- Cale-se, mujique!
- E os mujiques não são homens, como você?
- São mujiques, feitos de casca de árvore e recheados de mato.
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Cerca de quatro dias mais tarde, os vagões vermelhos dos trens carregados de tropas levavam os regimentos de cossacos e suas baterias para a fronteira russo-austríaca.
"Guerra"…
Os vagões zumbiam de conversas e canções. Olhares inquisitivos e benevolentes saudavam os cossacos nas estações, e o povo contemplava as listras das calças dos soldados.
"Guerra…"
Mulheres acenavam com lenços, sorriam e atiravam cigarros e doces para os soldados. Uma vez, pouco antes que o trem chegasse a Voronej, um velho ferroviário enfiou a cabeça no vagão, onde estava Piotr Melekhov com mais vinte e nove camaradas e perguntou:
- Estão indo?
- Sim. Entre e venha conosco, avozinho - respondeu um dos cossacos.
- Meu rapaz... bois para o matadouro! - disse o velho, sacudindo a cabeça em tom de reprovação.
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- Então você é um bolchevista? - perguntou.
- O nome não importa - respondeu Lagutin. - Não é uma questão de nomes, mas do que está certo. O povo quer os seus direitos, mas estes lhe são sempre negados.
- É óbvio que os bolchevistas estão ensinando você! Não perdeu tempo na companhia.
- Ah, capitão, é a própria vida que tem ensinado às pessoas pacientes, os bolchevistas apenas puseram fogo no pavio.
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Estava completamente exausto devido à guerra. Queria virar as costas ao mundo incompreensível, tempestuoso, hostil, cheio de ódio.
(Narração sobre Grigóri Melekhov ao voltar pra casa)
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É uma vida estranha, Aleksei! Os homens caminham às apalpadelas, como se fossem cegos; juntam-se e se separam de novo, às vezes se espezinhando uns aos outros… Aqui estamos, vivendo à beira da morte, e só podemos nos perguntar selvagemente por que tudo isso? Acho que não há nada mais terrível no mundo do que os seres humanos. Faça o que fizer, você não chegará ao fundo deles… Aqui estou eu a seu lado e não sei o que você está pensando e nunca soube, e também não sei que tipo de vida você leva. Você tampouco sabe sobre a minha vida… Talvez eu esteja querendo matá-lo agora, e aí está você me dando um biscoito, sem qualquer ideia do que estou pensando… As pessoas sabem pouco sobre si mesmas.
(Micha Kochevoi)
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Não. Sou forte. Não pense que haja homens feitos de aço. Somos forjados de um só material. Na vida real não há um homem que não tema a batalha, assim como não há nenhum que possa matar pessoas sem carregar… sem se sentir moralmente arranhado.
(Iliá Buntchuk para sua namorada Ana Pogudko)
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Achei que era melhor, antes de falar sobre esse livro marcante, oferecer uns trechinhos dele para que vocês provassem diretamente. Assim, já podem fazer uma ideia do assunto da obra e da atmosfera que a permeia.
“O Don silencioso” é um livro bem definido em termos de tempo e local. Esses fatores são, na verdade, o que unifica a obra, visto que ela traz a história de dezenas de personagens, com ideologias e destinos diferentes, alguns permanecendo até o fim do livro, alguns sumindo pela metade… E o fio que os une é, quase que exclusivamente, a região do Don, onde se passam os eventos de que eles participam, e que foi vivamente agitada pelos acontecimentos históricos do início do século XX.
O livro se divide em quatro partes. Na primeira, “Paz”, somos apresentados à aldeia de Tatarsk e à família Melekhov, cujo filho mais novo, Grigóri, é o que se tem de mais próximo de um personagem principal no livro. Toda essa parte descreve a vida da aldeia, agitada pelos escândalos sexuais, eventos matrimoniais e trabalho na lavoura. A descrição dos acontecimentos, dinâmica e abreviada, se mistura de modo indissolúvel à descrição do rio Don e seus arredores, parecendo, quase sempre, que a natureza espelha e influi no comportamento dos cossacos que vivem na aldeia.
É de se destacar, nessa primeira parte, a vida horrível que levavam as mulheres nesse contexto cultural. O autor, felizmente, não descreve essas crueldades em detalhes, mas presenciamos três estupros, algumas traições (tanto dos maridos como das esposas) e diversos casos de violência contra a mulher.
A segunda parte, “Guerra”, trata da primeira guerra mundial. Foi bastante interessante pra mim ler esse trecho. Já li muitos livros sobre a segunda guerra mundial, cujos acontecimentos atrozes são bem conhecidos, mas é apenas o segundo que leio sobre a primeira guerra (o outro era um livro de Erick Maria Remarque). Se não foi igualmente terrível em termos de genocídio, a primeira guerra mundial também se mostra bastante selvagem, sem precedentes com relação às guerras até então, já que a tecnologia para matar estava se aperfeiçoando cada vez mais.
E novamente as mulheres sofrem. Se na paz elas têm que suportar os próprios maridos culturalmente déspotas, na guerra, não podem contar com eles para prover seu sustento, e precisam arcar sozinhas com a lavoura e os cuidados da família e da propriedade. É uma condição péssima, e com grandes chances de se estender: não há nenhuma garantia que a guerra devolverá seu marido, pai ou filho, ou que o devolverá inteiro, capaz de te ajudar.
A guerra cria uma situação insustentável: os homens são convocados no momento da colheita. Diminuem os braços para trabalhar no campo; por consequência, diminui a comida disponível, tanto no front como fora dele. As forças para lutar - físicas e morais - vão minguando lentamente, conforme se esgotam as condições materiais de manutenção dos soldados. E isso é, em parte, o que nos precipita para a terceira parte do livro: a Revolução.
É fato histórico conhecido que a participação do Império Russo na primeira guerra mundial, por motivos que não serviam de real justificativa à população esfomeada, e a miséria que essa participação aprofundou serviram de empurrão para o estouro da Revolução de Outubro.
Sholokhov, todavia, explora isso mais de perto. Ele acompanha os soldados esfomeados e os bolcheviques disseminando sua teoria entre eles. O sem-sentido da guerra ressalta e reforça as explicações dadas por eles à situação reinante. E, ainda, há uma boa dose de ódio a canalizar.
Como em toda revolução, há aqueles que aderem a ela por abraçarem realmente seus ideais e acreditarem em seu método de luta; há outros que vão simplesmente por gostarem de "agito"; e ainda outros que, sem entender muito bem o que se passa, engajam-se enquanto os ideais defendidos não contrastarem com suas próprias convicções íntimas, como acontece com o personagem "principal", Grigóri Melekhov.
Os cossacos, no entanto - e é isso que vemos na quarta e última parte do livro, Guerra Civil - de modo geral não se identificam com a ideologia da revolução. Há os que a abraçam, é verdade, mas eles não se sentem parte do proletariado. Não são mujiques ou trabalhadores urbanos. Possuem uma cultura própria, forte, que constitui quase uma identidade nacional. Russos? Ucranianos? Nah, eles são cossacos. Da raça nobre que preza a liberdade, possui as próprias terras para divisão comunitária, e não estão sujeitos ao regime de servidão imposto aos camponeses; foram domesticados de outro jeito, passando ao serviço militar do czar.
Essa índole conservadora dos cossacos, sua falta de identificação com os ideais dos demais camponeses, bem assim sua desconfiança com relação ao novo governo fazem com que tomem, em sua maioria, posição ao lado do Exército Branco nessa parte final.
A guerra civil é retratada por Sholokhov a partir das duas perspectivas: com o cossacos, ele cobre o lado dos brancos; com Buntchuk e seus companheiros, retrata o front dos vermelhos. Ele mostra os pontos onde cada parte estava com razão, e não esconde as atrocidades cometidas pelos dois lados.
Bem, como já foi dito, o livro apresenta uma "fatia" com o retrato de um momento histórico, assistido de camarote pelo Rio Don. Não há, assim, o que se possa chamar de fim, apenas a indicação do destino de alguns personagens que, para evitar spoilers, não será tratada em detalhes aqui.
MIKHAIL ALEKSANDROVITCH SHOLOKHOV (24/05/1905 - 21/02/1984) nasceu no oblast' de Rostov, no então Império Russo, e lutou do lado dos bolcheviques na guerra civil desde 1918, com 13 anos. É conhecido como um escritor comunista, apesar de sua obra não fazer o estilo propagandista, girando, antes, quase toda em torno do ambiente (físico e humano) vizinho do rio Don. Sholokhov ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1965, pelo conjunto de sua obra, da qual o livro "O Don Silencioso" constitui o ápice. Se alguém quiser conhecer o autor, portanto, este livro é uma boa pedida.
Sabe me informar a diferença entre a edição da Editora Record e da Editora Dois Amigos?
ResponderExcluirOlá! Obrigada pelo comentário! Infelizmente, não saberei responder à sua pergunta, porque não li o livro nas edições dessas editoras, e sim numa antiga edição da Círculo do Livro. Nem posso garantir que alguma delas tenha sido traduzida diretamente do russo. Desculpe por não poder ajudar.
ExcluirOk, obrigado mesmo assim! E suas resenhas são excelentes, continue com elas!
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