Se a pessoa nunca andou a cavalo por secas estradas
rurais , não tenho o que lhe contar sobre isso : de qualquer forma ela não
entenderá . E aquele que já andou , não
quero nem fazer lembrar da experiência .
“Paralisis”,
eu disse a mim mesmo desesperadamente , em pensamento , e sabe -se lá para quê .
– A pessoa tem que se ac ... acostumar a andar ... –
comecei a falar , por entre lábios azulados e de madeira – n ... nas estradas de
vocês ...
E, ao dizer isso , cravei os olhos no cocheiro , embora
ele , no fundo , não fosse culpado por aquela estrada .
– Eh, camarada doutor – respondeu o cocheiro , também
mal mexendo os lábios sob os bigodes claros – há quinze anos que ando por elas ,
e ainda não consegui me acostumar .
“Da próxima vez vou vestir um sobretudo de pele...”,
pensei , num desespero raivoso , e arrebatei a mala pelas correias com mãos que
não se dobravam , “eu ... se bem que da próxima vez já será outubro ... tem que
vestir ao menos dois sobretudos . Mas antes de passar um mês não vou , não vou
para Gratchióvka ... Pense só ... se foi preciso até pernoitar ! Fizemos vinte verstas e nos vimos em trevas
sepulcrais ... noite ... tivemos que pernoitar em Grabilovka ... o professor foi
embora ... E hoje de manhã saímos às sete horas... e vai -se andando ... ora ,
raios ... mais devagar que um pedestre . Uma roda se esborracha num buraco , outra
se ergue no ar , a mala vai parar nos pés – bum... então você cai sobre um lado
do corpo , sobre o outro , dá com o nariz na frente , depois com a nuca . E ainda
por cima neva e neva , e os ossos congelam . E eu por acaso eu poderia crer que
no meio de um setembro cinzento e azedo , no campo, se pode congelar como em um
inverno atroz ?! Mas, ao que parece , pode -se . E, enquanto morre de uma morte
lenta , você vê sempre a mesma coisa , só uma. À direita , um campo roído e
corcovado , à esquerda , um bosquezinho mirrado , e ao pé dele , isbás[2]
cinzentas , esfrangalhadas , umas cinco ou seis . E parece que não há vivalma
nelas . Silêncio , o silêncio nos cerca ...”
A mala finalmente cedeu . O cocheiro deitou de barriga
sobre ela e a empurrou direto para mim. Eu quis segurá -la pela alça , mas a mão
se recusou a trabalhar , e minha companheira de viagem encharcada e de barriga
cheia com os meus livros e todos os meus pertences escarrapachou -se direto na
grama, acertando -me os pés .
– Eita, Senh ... – começou o cocheiro , assustado , mas
eu não emiti nenhuma reclamação : minhas pernas não se importariam nem se alguém
as jogasse fora.
– Ei , alguém aí ? Ei ! – gritou o cocheiro , e bateu as
mãos , como um galo faria com as asas . – Ei , eu trouxe o doutor !
Nesse momento , rostos apareceram nas vidraças escuras
da casinha do enfermeiro , grudaram -se a elas , a porta bateu , e então vi um
homem de casaquinho roto e botinhas vir claudicando pela grama em minha
direção . Ele tirou o quepe respeitosa e apressadamente , correndo até dois
passos de mim, sorriu envergonhado por algum motivo e me cumprimentou com uma
voz rouquenha :
– Olá , camarada doutor .
– Quem é você ? – perguntei .
– Sou Egoritch – o homem se apresentou – , o guarda
local. Bem que nós o estávamos esperando ...
E então ele deitou a mão na mala, ergueu -a para o seu
ombro e foi carregando . Manquejei atrás
dele , tentando sem sucesso meter a mão no bolso das calças para tirar o
porta-moedas .
O ser humano , em essência , precisa de muito pouco . E,
acima de tudo , precisa de fogo . Quando parti para o cafundó do Judas em
Murievo , eu – vale lembrar , ainda em Moscou – me dei a palavra de me portar com
seriedade . Minha aparência jovem envenenou -me a existência desde os primeiros
passos . Para cada um tinha que me apresentar :
– Doutor Fulano de Tal.
E todos sem falta erguiam as sobrancelhas e
perguntavam :
– Sério? E eu aqui pensando que o senhor ainda era
estudante .
– Não , já me formei – eu respondia , carrancudo , e
pensava : “É isso , preciso arranjar uns óculos ”. Mas não tinha para que arranjar
óculos , meus olhos eram saudáveis e sua clareza ainda não fora empanada pela
experiência de vida . Sem poder me defender dos constantes sorrisos
condescendentes e carinhosos usando óculos , tentei adotar maneiras especiais ,
que inspirassem respeito . Tentava falar de modo comedido e convincente , conter ,
na medida do possível , os movimentos bruscos , não correr , como correm as
pessoas de vinte e três anos que acabaram de se formar , mas caminhar . Tudo isso
me saía – como agora percebo , passados vários anos – muito mal .
– Hm – resmunguei , de um jeito bem significativo – até
que vocês têm um equipamento decente . Hm…
– Certamente , senhor – pontuou docemente Demián
Lukitch . – Tudo graças aos esforços do seu predecessor, Leopold Leopoldovitch .
Ele operava literalmente de manhã até a noite .
Nesse momento , cobri -me de suor frio e relanceei o
olhar melancolicamente para os resplandecentes armarinhos espelhados .
– No tempo do Leopold Leopoldovitch , às vezes até
cinquenta ficavam aí – consolou -me Demián Lukitch , e Anna Nikoláievna , uma
mulher com uma coroa de cabelos grisalhos , disse por algum motivo :
– O senhor, doutor , parece tão jovem , tão jovem ... É
simplesmente surpreendente . O senhor parece um estudante .
“Tsc, droga ” , pensei , “eu não disse ?!”
E resmunguei entre dentes, secamente :
– Hm... não , eu ... isto é , eu ... sim, pareço jovem …
– Leopold Leopoldovitch encomendou – Pelagueia
Ivánovna mencionou , com orgulho .
“Era um homem simplesmente genial esse Leopold”,
pensei , e senti respeito pelo misterioso Leopold, que abandonara o tranquilo
hospital de Murievo .
O ser humano , além do fogo , também precisa se sentir
em casa. O galo fora comido por mim havia muito , um colchão de palha , estofado
para mim por Egoritch e coberto com um lençol e uma lâmpada ardia no gabinete
da minha residência . Eu estava sentado e , como que enfeitiçado , olhava para a
terceira conquista do legendário Leopold: o armário atulhado de livros . Só de
manuais sobre cirurgia em russo e alemão , contei rapidamente mais de cinquenta
tomos . E terapia ! Maravilhosos atlas encadernados em couro !
A noite seguia , e eu me adaptava .
“Não tenho culpa de nada” , pensei , teimosa e
aflitivamente . “ Eu tenho diploma, fechei as médias com quinze ‘dez ’. Avisei ,
quando ainda estava na cidade grande, que queria trabalhar como médico adjunto .
Não . Sorriram e disseram ‘Você vai se sentir em casa’. Sinta-se em casa você ! E
se vierem com uma hérnia ? Expliquem , como é que vou me sentir em casa com ela ? E em especial como é que vai se sentir o
doente cuja hérnia eu tenho nas mãos ? Vai se sentir em casa no outro mundo
(nesse ponto um frio me perpassou pela espinha )...
E uma apendicite purulenta ? Ha! E um crupe difteriano
nas crianças da aldeia ? Quando uma traqueotomia vai aparecer ? Mesmo sem a
traqueotomia já será bem desagradável para mim... E... e ... partos ! Esqueci dos
partos ! Bebês nas posições erradas . O que é que eu vou fazer ? Ahn ? Que pessoa
leviana eu sou ! Devia era renunciar a esse posto . Devia. Arranjariam para si
outro Leopold.”
Em melancolia e no crepúsculo eu passeava pelo
gabinete . Quando alcancei a lâmpada , vi meu rosto pálido surgir momentaneamente
na treva sem limites dos campos, junto às suas chamas refletidas na janela .
“Pareço o Falso Dmitri”[3],
pensei de repente , estupidamente , e me sentei de novo à mesa.
A voz não era burra , não é verdade ? Estremeci .
“Silêncio ” , disse para a voz . “Não necessariamente uma
hérnia . Que tal uma neurastenia ? Quem inventa aguenta ” .
“Quem fala sustenta ”, replicou sarcasticamente a voz .
Vejamos... não vou me separar do guia... Se tiver que
receitar alguma coisa, posso pensar enquanto lavo as mãos. O guia ficará aberto
bem em cima do livro de prontuário. Darei receitas úteis, mas simples. Bem, por
exemplo, ácido salicílico três vezes ao dia, 0,5 por dose…
“Pode-se receitar soda!”, replicou meu interlocutor
interior, obviamente escarnecendo .
O que a soda tem a ver com isso? Se quiser receitarei
até infusão de ipecacuanha... em 180 mls. Ou em 200. Dá licença.
E então, embora ninguém sequer exigisse ipecacuanha de
mim na solidão perto da lâmpada, folheei covardemente o manual de receitas,
chequei a ipecacuanha, e até li maquinalmente de passagem que havia no mundo
uma tal de “insipina”. Não passava de “sulfato de éter de ácido diglicólico de
quinina”... Ao que parece, não tem gosto de quinino. Mas para que serve? E como
receitá-la? O que ela é, um pó? Que o diabo a carregue!
“Insipina é insipina, mas como é que vai ser com a
hérnia, afinal?”, importunou teimosamente o medo em forma de voz.
“Mandarei tomar um banho de banheira” defendi-me,
exasperado, “um banho. E tentarei por de volta no lugar”.
“Uma hérnia estrangulada, meu anjo! Para o inferno com
os banhos aqui! Uma estrangulada”, o medo cantou com voz de demônio, “Tem que
cortar...”
Então eu desisti e por pouco não chorei. E dirigi uma
prece às trevas além da janela: tudo o que quiserem, menos uma hérnia
estrangulada.
E o cansaço cantarolou :
“Vá dormir, esculápio infeliz. Durma bem, e de manhã
tudo estará visível. Acalme-se, jovem neurastênico. Olhe: as trevas além da
janela estão quietas, os campos congelados dormem, não há nenhuma hérnia. E de
manhã as coisas estarão visíveis. Durma... Largue o atlas... Você não vai
entender nada agora, de qualquer forma. Anel herniário...”
Nem compreendi como ele entrou voando. Lembro que a
tranca da porta fez um barulhão, Aksínia piou alguma coisa. E também uma teléga[4]
passou rangendo além das janelas.
Ele estava sem chapéu, de pelica curta desabotoada,
tinha uma barbicha de feltro e olhos enlouquecidos.
Ele se persignou, deixou-se cair de joelhos, e bateu
com a testa no chão. Era comigo.
“Me ferrei”, pensei, melancolicamente.
– Que foi, que foi, que foi? – balbuciei, e puxei-o
pela manga cinzenta.
– Senhor doutor... senhor... minha única, a única... A
única! – gritou de repente, com voz como a de um jovem, sonora a ponto de fazer
tremer o abajur. – Ai meu Senhor... Ah... – Ele torceu as mãos em aflição e
novamente deu com a testa nas tábuas do assoalho, como se quisesse parti-la. –
Por quê? Por que o castigo?.. Com o que vos irastes?
– O quê? O que aconteceu?! – gritei, sentindo meu
rosto congelar.
Ele pulou de pé, agitou-se, e sussurrou:
– Senhor doutor... o que o senhor quiser... dou
dinheiro... Pegue dinheiro, quanto quiser. Quanto quiser. Vamos trazer
comida... Só não deixe ela morrer. Só não deixe ela morrer. Mesmo que fique
aleijada, tudo bem. Tudo bem! – ele gritou para o teto. – Posso sustentá-la,
posso!
O rosto pálido de Aksínia estava pendurado na moldura
negra da porta. A melancolia envolveu meu coração.
– O quê?... O quê? Diga! – gritei, de forma doentia.
Ele se aquietou e, num sussurro, me disse em segredo,
com seus olhos tornando-se insondáveis:
– Na espadelador... no
espadelador?.. – perguntei. – O que é isso?
– O linho, estavam
espadelando o linho... senhor doutor... – esclareceu Aksínia num sussurro –
esse espadelador... espadelam o linho...[ESB1]
“Começou. Olha aí. Oh, para que foi que eu vim!”,
pensei.
– Quem?
– Minha filhinha – ele respondeu num sussurro, e então
gritou: – Acuda! – e deixou-se cair de novo, e seus cabelos, cortados à tigela,
caíram-lhe nos olhos.
Um lampião a querosene coberto por uma cúpula de lata ardia
intensamente, com os dois tubos. Na mesa de operação, sobre o oleado de cheiro
fresco eu a vi, e a hérnia sumiu da minha memória.
Cabelos claros, meio arruivados, pendiam da mesa,
amarrados num montão seco e enredado. A trança era gigantesca, e sua ponta
tocava o chão.
A saia de chita estava rasgada, e o sangue nela era de
uma cor diferente – uma mancha castanho-acinzentada, uma mancha gordurosa,
escarlate. A luz do lampião parecia-me amarela e viva; já o rosto dela, estava branco como
papel, e seu nariz, saliente[ESB2] .
Em seu rosto branco, extinguia-se uma beleza
verdadeiramente rara, imóvel, como se fosse de gesso. Não é sempre e nem com
frequência que encontramos um rosto assim.
Fez-se silêncio na sala de operação por dez segundos,
mas atrás das portas fechadas se ouvia o pai soltar gritos abafados e bater,
bater continuamente a cabeça.
“Enlouqueceu”, pensei, “e as enfermeiras devem estar
dando uma bebida para reanimá-lo... Por que tão linda? Embora os traços do
rosto dele sejam regulares... Está na cara que a mãe era bonita... Ele é
viúvo”.
– Ele é viúvo? – perguntei, maquinalmente.
– É – Pelagueia Ivánovna respondeu baixinho.
Nesse momento, Demián Lukitch rasgou a saia dela da
barra até em cima, num movimento brusco, quase raivoso, e desnudou-a de uma
vez. Olhei, e o que vi superou minhas expectativas. A perna esquerda, a bem
dizer, não existia. Começando no joelho fragmentado, jaziam farrapos
sangrentos, músculos vermelhos amassados, e brancos ossos esmagados despontavam
agudos em todas as direções. A direita estava fraturada na parte inferior de
tal modo que as pontas de ambos os ossos saltavam para fora, atravessando a
pele. O pé dela jazia sem vida, virado de lado, como que separado do resto.
– É – pronunciou baixinho o enfermeiro, e não
acrescentou mais nada.
Então saí do torpor e tomei o pulso dela. Não dava
para senti-lo no braço gelado. Somente após alguns segundos encontrei uma
ondinha rara, que mal se notava. Passou... depois houve uma pausa, durante a
qual consegui dar uma olhada nas narinas azuladas e nos lábios pálidos... Já
estava quase dizendo: acabou... felizmente, me contive... Mais uma vez passou a
onda, como um fiozinho.
“Eis uma pessoa estraçalhada se extinguindo”, pensei,
“já não há o que fazer aqui...”
Mas, de repente, eu disse severamente, sem reconhecer
minha própria voz:
– Cânfora.
Aí, Anna Nikoláievna se inclinou e sussurrou no meu
ouvido:
– Para quê, doutor? Não a torture. Para que ainda
picá-la? Logo estará morta... O senhor não conseguirá salvá-la.
Olhei-a com um ar raivoso e sombrio e disse:
– Estou pedindo cânfora.
De tal modo que Anna Nikoláievna, com uma cara
encolerizada e ofendida, se lançou imediatamente para a mesinha e quebrou uma
ampola.
O enfermeiro, via-se, também não aprovava a cânfora.
Mesmo assim, pegou a seringa com agilidade e rapidez, e o óleo amarelo penetrou
sob a pele do ombro da menina.
“Morra. Morra logo”, pensei, “morra. Ou então o que é
que vou fazer com você?”
– Já vai falecer – sussurrou o enfermeiro, como que
adivinhando meu pensamento Olhou de esguelha para o lençol, mas claramente
mudou de ideia: seria uma pena ensanguentá-lo. Só que, dentro de poucos
segundos, teríamos que cobri-la. Ela jazia como um cadáver, mas não morreu. De
repente, dentro da minha cabeça ficou claro como sob o teto de vidro do nosso
distante teatro anatômico.
– Mais cânfora – eu disse com a voz rouca.
E o enfermeiro injetou o óleo de novo, obediente.
“Mas será possível que não vai morrer?..”, pensei, em
desespero. “Será mesmo preciso...”
Tudo se iluminou no meu cérebro, e de repente, sem
quaisquer manuais, sem conselhos, sem ajuda, eu compreendi – era férrea a
certeza de que compreendera – que agora eu teria que fazer uma amputação em uma
pessoa moribunda, pela primeira vez na vida. E essa pessoa morreria sob o
bisturi. Ah, morrerá sob o bisturi. Se ela nem tem sangue! Todo ele se
derramara pelas pernas destroçadas ao longo do caminho de dez verstas, e não
dava para saber sequer se ela sentia alguma coisa no momento, se escutava algo.
Está quieta. Ah, por que não morre? O que me dirá o pai enlouquecido?
– Prepare uma amputação – eu disse ao enfermeiro com
uma voz que não era a minha.
A parteira olhou-me com ar selvagem, mas nos olhos do
enfermeiro surgiu por um momento a faísca da compaixão, e ele se pôs em
atividade perto dos instrumentos. Sob as mãos dele, o fogareiro soltou um
rugido...
Passou um quarto de hora. Com terror supersticioso eu
perscrutava os olhos que se apagavam, soerguendo a pálpebra fria. Não
compreendia nada. Como pode viver um meio-morto? Gotas de suor corriam-me
livremente pela testa de sob o barrete branco, e com uma gaze Pelagueia
Ivánovna secava o suor salgado. Agora também boiava cafeína nos restos de
sangue nas veias da garota. Havia mesmo necessidade de injetá-la? Tocando de
leve, Anna Nikoláievna passava nas coxas retalhos de tecido fofo, empapados de
soro fisiológico. E a garota vivia.
Peguei a faca, tentando imitar certo alguém (uma vez
na vida, na universidade, eu vira uma amputação)... Rogava agora ao destino que
ela não morresse na próxima meia hora... “Que morra na enfermaria, quando eu
tiver terminado a operação...”
A meu favor trabalhava apenas meu bom senso, fustigado
pelo extraordinário da situação. Agilmente como um experiente açougueiro, dei
uma navalhada na coxa num movimento circular com a faca afiadíssima, e a pele
se rompeu, sem vazar nem uma gotícula de sangue. “Os vasos sanguíneos começarão
a sangrar, o que vou fazer?”, pensei, e como um lobo, olhei de esguelha para o
montão de pinças e alicates. Cortei um enorme pedaço de carne feminina e um dos
vasos – ele tinha o aspecto de um caninho esbranquiçado – mas nem uma gota de
sangue saiu dele. Cerrei-o com uma pinça cirúrgica e segui adiante. Enfiava
essas pinças em todo lugar em que adivinhava um vasinho... “Arteria... Arteria...[5]
como raios ela é?..” A sala de operação ficou parecendo uma clínica. As pinças
cirúrgicas pendiam em cachos. Retiraram-nas com gaze, junto com a carne, e eu
comecei a serrar o osso redondo com uma deslumbrante serra de dentes miúdos.
“Por que não morre?... É surpreendente... oh, como o ser humano é resistente!”
E o osso se desprendeu. Nas mãos de Demián Lukitch
ficou aquilo que outrora fora a perna de uma menina. Um emaranhado de carne e
ossos! Puseram tudo isso de lado, e, na mesa, ficou a garota, como que encurtada
em um terço, com o coto estirado para um lado. “Só mais um pouquinho... não
morra”, pensei, inspirado, “aguente até a enfermaria, me deixe pular fora com
sucesso desse terrível acontecimento da minha vida”.
Depois ataram as ligaduras, depois, com os joelhos
batendo, comecei a costurar a pele com alguns pontos... mas parei, deu-me um
estalo, compreendi uma coisa... deixei escorrerem um pouco o sangue e os
fluídos... coloquei um tampão de gaze... O suor me anuviava os olhos, e parecia
que eu estava na sauna.
Eu ofegava. Olhei pesadamente para o coto, para o
rosto de cera. Perguntei:
– Está viva?
– Está... – o enfermeiro e Anna Nikoláievna
responderam ao mesmo tempo, como um eco sem som.
– Vai viver mais um minutinho – disse-me ao ouvido o
enfermeiro, sem emitir som, somente com os lábios. Depois hesitou e aconselhou
delicadamente – A segunda perna talvez nem seja preciso tocar doutor.
Enrolaremos, sabe, com gaze... ou então não aguentará até a enfermaria... Que
tal? Muito melhor se não morrer na sala de operação.
– Dê-me gesso – respondi, roufenho, impulsionado por
uma força desconhecida.
O chão inteiro estava salpicado de manchas brancas,
nós todos estávamos suados. A meio-morta jazia imóvel. Sua perna direita estava
engessada, e, na parte inferior da perna, aparecia uma janela deixada por mim
no local da fratura, num rasgo de inspiração.
– Está viva... – disse o enfermeiro, surpreso e com
voz rouca.
Então começaram a levantá-la, e sob o lençol se via um
fosso gigantesco – deixamos um terço do corpo dela na sala de operação.
Então as sombras no corredor se agitaram levemente, as
auxiliares de enfermagem correram para cá e para lá, e eu vi uma figura
masculina escorregar pela parede e soltar um brado seco. Mas o retiraram dali.
E se aquietou.
Na sala de operação, eu lavava as mãos ensanguentadas
até os cotovelos.
– O senhor, doutor, provavelmente já fez muitas
amputações, hm? – perguntou de repente Anna Nikoláievna. – Muito, muito bem...
Não ficou devendo nada ao Leopold…
Nos lábios dela a palavra “Leopold” soava
invariavelmente como “Decano”.
Olhei de soslaio para os rostos. E nos olhos de todos
– inclusive Demián Lukitch e Pelagueia Ivánovna – notei respeito e surpresa.
– Hm... eu... Só fiz duas vezes, veja só…
Para que eu menti? Agora já nem saberia dizer.
Fez-se silêncio no hospital. Completo.
– Quando ela morrer, mande me chamar sem falta – eu
disse à meia voz para o enfermeiro, e ele, por algum motivo, em vez de “tudo
bem”, respondeu respeitosamente:
– Às ordens, senhor…
Alguns minutos depois, eu me encontrava junto à
lâmpada verde no gabinete do apartamento do médico. A casa estava em silêncio.
Um rosto pálido se refletiu no vidro negríssimo.
“Não, não me pareço com o Dmitri Impostor, e, veja só,
envelheci um pouquinho... tenho uma ruga acima do nariz... Logo vão bater...
dirão: ‘Morreu’...”
“Sim, vou lá olhar uma última vez... logo soará a
batida…”
* * *
Bateram na porta. Depois de dois meses e meio. Na
janela brilhava um dos primeiros dias de inverno.
Ele entrou, e só então o examinei direito. Sim, os traços
do rosto dele eram mesmo regulares. Uns quarenta e cinco anos. Os olhos
faiscavam.
E então um leve farfalhar. Apoiada em duas muletas,
uma garota de uma perna só com uma beleza encantadora entrou pulando, usando
uma amplíssima saia com um debrum vermelho costurado na barra.
Ela olhou para mim, e suas bochechas se cobriram de um
tom róseo.
– Em Moscou... em Moscou... – e me pus a escrever o
endereço. – Lá farão uma prótese, uma perna artificial.
– Beije a mão dele – o pai disse, de repente e
inesperadamente.
Eu me desnorteei a tal ponto, que, ao invés dos
lábios, beijei o nariz dela.
Então, equilibrando-se nas muletas, ela desdobrou um
embrulho, e dele caiu uma toalha comprida, branca como a neve, com um simples
galo vermelho bordado. Então era isso que ela escondia sob o travesseiro
durante os exames. De vez em quando, lembro, havia linhas na mesinha de
cabeceira.
– Não aceitarei – eu disse severamente, e até sacudi a
cabeça. Mas ela fez uma cara, os olhos assumiram tal expressão, que acabei
aceitando...
E a toalha ficou pendurada perto de mim em Murievo por
muitos anos, e depois correu o mundo comigo. Por fim envelheceu, desbotou,
esburacou-se e desapareceu, como desbotam e desaparecem as recordações.
[1] Antiga medida
russa de comprimento. Uma versta
equivale a 1.067 metros. (N. T.)
[2] Isbá é a
típica habitação camponesa russa, de madeira. (N. T.)
[3] O “Falso
Dmitri” foi um monge chamado Grigóri Otrepiev que se passou pelo filho
misteriosamente morto do czar Ivan IV (Ivan, o Terrível). Usando o pretexto de
restaurar o trono russo ao herdeiro legítimo – Grigóri se passando por Dmitri –
os poloneses e outros nobres marcharam sobre Moscou, para derrubar Boris
Godunov. Até hoje, a figura é sinônimo de “impostor” na tradição russa. (N. T.)
[4] Carro ou
carroça de quatro rodas que os russos usavam para transportar mercadorias. (N.
T.)
[5] Todas as
referências a medicamentos ou doenças em latim foram mantidas do original. (N.
T.)
***
Forte, terrivel e GELAAAADO....
ResponderExcluirOBRIGADO por disponibilizar isso
ResponderExcluirMais contos desse livro por favor!
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