O poeta russo Vassili Jukovski (1783–1852) está entre os linguistas que contribuíram mais intensamente para o florescimento da língua e da literatura russas , na primeira metade do Século XIX. Contemporâneo de Púchkin e Gogol, recebeu elogios de ambos, sobretudo por suas traduções , que apresentaram ao público russo obras clássicas e contemporâneas do grego, do francês , do inglês e do alemão , tanto de prosa , quanto — e principalmente — de poesia .
Cabe aos poetas , na minha opinião , traduzir poemas ; a tradução de versos em prosa é sempre a mais infiel e distante do original. Um dos principais encantos da poesia consiste na harmonia : na prosa ela ou desaparece , ou não consegue ser suprida por aquela harmonia que é própria da prosa . O mesmo pensamento , expressado por um poeta e por um prosista , age sobre nós de maneira diferente : em La Rochefoucauld [1] e La Bruyère [2] encontramos tantos pensamentos afiados e justos quanto em Boileau [3]; mas é muito mais fácil aprender de cor quarenta versos de Boileau do que dez linhas de La Bruyère e La Rochefoucauld: o ouvido ama a harmonia , e a harmonia poética é incomparavelmente mais agradável que a da prosa .
Por fim , o caráter dos versos é muito distinto do caráter da prosa . A ousadia do poeta intimida o tímido prosista ; a vivacidade do primeiro contradiz a compostura do segundo , e a rapidez dos versos não pode jamais ser transmitida para a vagarosa prosa . O que é impressionante nos versos se torna ríspido na prosa , o que é forte se torna rude, o que é vivo, muito fogoso , o que é ousado , temerário ; e o prosista sem sentir vai ceder lugar ao caráter da prosa , substituir a força por fraqueza , a linguagem figurada pela simples , a harmonia métrica pela forma de falar do dia a dia e , por fim , o encanto do triunfo do poeta sobre a dificuldade pela agradabilidade insignificante da prosa fácil . Deixe que ele seja mais fiel que o poeta ao expressar alguns pensamentos e na observação exata da ordem ! O poeta lhe cede essas vantagens de pouca importância e essa fidelidade ilusória , que não consegue suprir a verdadeira : pois a ousadia , a rapidez , a harmonia e as figuras constituem atributo essencial da poesia .
Ou quando , no original, a junção de algumas palavras produz harmonia ; mas as mesmas palavras , juntadas na tradução , ofendem a um ouvido delicado , e você , com a sua exatidão , precisará eliminar a harmonia .
Se no original, aquela expressão e aquela locução são novas, mas na sua língua , ao contrário , elas já perderam sua novidade , gastas pelo uso , você estará trocando o extraordinário pelo ordinário .
Algum pormenor geográfico ou uma atitude com relação aos costumes do poeta que você está traduzindo podem ser agradáveis à nação para a qual ele escreveu seu poema ; mas você causará apenas estranheza , se quiser conservar sem falta todas essas relações e pormenores na sua tradução .
O que , no fim das contas , faz um tradutor hábil ? Ele se familiariza com as peculiaridades de ambas as línguas . Se elas forem parecidas na sua essência , então resta -lhe apenas ser fiel ; se , ao contrário , forem distantes uma da outra, ele tenta preencher os vácuos com uma refinada aproximação das línguas , emprestando do original tudo o que puder emprestar , e conservando , ao mesmo tempo, todas as normas do seu próprio idioma . Todo escritor , pode -se dizer , tem uma fisionomia própria : mais ou menos vivo, mais ou menos veloz , mais ou menos espirituoso ; por isso , ao se traduzir , por exemplo , Virgílio , que tem um estilo simples , claro e comedido , não se deve emprestar de Ovídio nem a suntuosidade , nem a prolixidade , nem a profusão do modo de se expressar .
Por fim , o tradutor deve reservar para cada componente da frase o lugar que ele ocupa no original, sempre que o desenvolvimento gradual e o encadeamento natural dos pensamentos assim o exigirem . É indispensável expressar as linhas fortes com a brevidade que lhes é característica ; consequentemente , o que é dito pelo autor em um verso deve ser expressado em um verso pelo tradutor também : espalhar faria perder a força .
Mas o principal dever do tradutor , ao qual todos os outros se submetem , consiste em tentar , em cada parte da tradução , produzir o mesmo efeito que o original produz . Ele é obrigado a, na medida do possível , nos apresentar , se não as mesmas belezas , pelo menos a mesma quantidade de belezas . O tradutor pode ser comparado a um devedor que se obriga a pagar , se não com a mesma moeda , pelo menos a mesma quantia . Por exemplo , se ele não consegue , na sua tradução , conservar esta ou aquela imagem , que tente substituí -la por uma ideia : se não consegue pintar para agradar o ouvido , que pinte para agradar o intelecto ; se não consegue o mesmo vigor, que substitua o vigor pela harmonia ; se não consegue ser breve, que seja rico ; se prevê que precisará enfraquecer o original neste ponto , que o fortaleça em outro e devolva no fim o que foi roubado no começo ; em uma palavra , ele deve sem falta agarrar -se firmemente a um rígido sistema de compensação , tentando , porém , o quanto for possível , manter a proximidade ao caráter principal do original. De tudo o que se disse acima , decorre que nunca se deve comparar os versos do tradutor com os versos que lhe correspondem no original: o correto é julgar o valor de uma tradução pelo efeito essencial do todo .
Mas para traduzir dessa forma , é indispensável não apenas imbuir -se , como dizem , do espírito do seu poeta , tomar emprestado seu caráter e mudar -se para sua pátria ; deve -se buscar suas belezas na própria fonte delas , isto é , na natureza ; para imitar -lhe mais comodamente na representação das coisas , é preciso ver você mesmo essas coisas , e nesse caso o tradutor se torna um criador . Se você quer traduzir Thomson7: saia da cidade , mude -se para o campo, deixe -se cativar por aquela natureza que você quer representar junto com o seu poeta : ela será , para você , a melhor intérprete dos pensamentos dele .
Observações
1–3 François de La Rochefoucauld (1613–1680) — personalidade política e escritor francês , autor do livro de fragmentos filosóficos e aforismos “Reflexões ou Sentenças e máximas morais ”. Jean de La Bruyère (1645–1698) — escritor moralista francês , autor do panfleto político “Os Personagens ou Costumes do Século ”. Nicolas Boileau-Despréaux (1636–1711) — poeta francês , um dos principais teóricos do classicismo , autor de sátiras e do tratado sobre poesia “A Arte Poética” (1674), composto imitando a “Arte Poética”, do poeta romano Horácio .
4–5 Alexander Pope( 1688–1744) — poeta inglês , um dos responsáveis por ditar os gostos poéticos da época do Renascimento, que compôs as traduções clássicas para o inglês de “Ilíada ” e “Odisseia”. John Dryden (1631–1700) — poeta e dramaturgo inglês , e tradutor da “Eneida” de Virgílio .
6 Jukovski está falando sobre as diferenças entre os estilos do poema épico de Virgílio , “Eneida”, e do seu poema didático “Geórgicas ”.
7 James Thomson( 1700–1748) — poeta sentimentalista escocês , autor do ciclo de poemas “As Estações ” (1726–1730).
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