Se bem me lembro, minha vontade de ler Nós nasceu quando ouvi a história mencionada numa discussão sobre as melhores distopias clássicas, vários anos atrás. Mais tarde, fiquei sabendo, não lembro por qual meio, que este livro teria inspirado George Orwell a escrever o tristíssimo, porém excelente, 1984 (não leiam em fase de bad), e a vontade de ler a obra influenciadora, lógico, aumentou.
Até onde eu sabia, no entanto, não havia tradução dele para o português brasileiro. Pelo menos eu não encontrei nenhuma, e as pessoas que tinham comentado sobre o livro se referiam a ele como We, então presumo que tenham lido em inglês. Eu não sou muito fã de ler em inglês o que não foi escrito nessa língua, então esperei melhorar meu russo e, em 2016, consegui colocar meus dedinhos no original. Este aqui:
Naquelas ironias do destino, em 2017 o livro foi publicado em português pela Editora Aleph, com tradução de Gabriela Soares, e um acabamento lindo:
Mas como eu ando sem dinheiro para comprar a tradução, li a versão que tinha em casa, mesmo. Então, se alguém que leu a tradução da Editora Aleph chegar aqui e estranhar a terminologia, está aí a explicação de eventuais discrepâncias.
Isso esclarecido, vamos ao livro.
Nós foi escrito em primeira pessoa, na forma de uma espécie de diário de um matemático. O narrador se apresenta a nós fazendo referência a uma matéria de jornal sobre o Integral (Интеграл), uma nave espacial que ele e seus colegas cientistas estão finalizando, a fim de levar a civilização humana aos possíveis habitantes desconhecidos do espaço. Essa matéria convoca os poetas do país a escreverem poemas que serão incluídos na bagagem do Integral, no seu primeiro lançamento. A ideia é apresentar aos ETs o modo de vida perfeito atingido pelos terráqueos, e nosso matemático D-503 quer fazer sua pequena contribuição também. Como ele não entende de poemas, começa esse diário, que, por sua profissão, talvez, tem uma forma um tanto rígida, engessada, o que hoje chamariam “de exatas”. Por exemplo, ele começa cada capítulo ou registro com uma ementa, que contém palavras-chaves resumindo o conteúdo. A influência da profissão do personagem, ou talvez sua conexão profunda com a personalidade dele, se manifesta de outras maneiras no livro, que é rico em metáforas e comparações matemáticas, filosofias e descrições geometricamente expressadas.
Essa própria conexão de D-503 com a matemática é causa e produto de seu agrado com a sociedade em que ele vive. Ao contrário da maioria dos heróis de distopias clássicas, que já começam com um pé atrás em relação aos seus sistemas (ao menos é o que eu me lembro do Winston de 1984, os protagonistas de Admirável Mundo Novo e o bombeiro de Fahrenheit 451), D-503 é um cidadão exemplar. Ele está plenamente satisfeito com o modo pontual, cronometrado, coletivo em que vivem, perfeitamente imbuído da crença de que aquele é o melhor sistema, e só não é melhor porque não é suficientemente controlador: os pensamentos de que a liberdade é a inimiga nº 1 da felicidade do homem são ventilados várias vezes nas divagações do protagonista.
Numa das primeiras cenas narradas, prelúdio para o conflito, nós o encontramos no seu passeio vespertino, e começamos a ter contato visual com a sociedade de Nós. Vemos largas vias, metal, condições atmosféricas simuladas, iluminação controlada, e todos, todos os prédios, móveis, etc., feitos de vidro transparente. E pelas vias, caminham praticamente todos os outros cidadãos, já que o horário das 16 às 17h é “livre”, e a recomendação do governo é que seja usado para um passeio. Estão todos passeando, com seus (já esperados) uniformes azuis-claros, e um emblema no peito que carrega a identidade de cada número (нумер): D-503, 0–90, R-13, I-330…
Isso mesmo, as pessoas não são mais pessoas, são números, e este é um conceito vital para a história. O eu desapareceu; o que importa agora é nós. Cada um é uma peça da coletividade, e como tal deve ser preservada; por isso precisam seguir a rígida rotina com hora para dormir, comer, exercícios, trabalho, lazer, programação de encontros sexuais semanais, etc. Em si mesmo, porém, o indivíduo é irrelevante. Com o eu, desapareceram também os nomes, que reforçavam a noção obsoleta da individualidade, bem como a diferença.
Na lógica da sociedade de Nós, toda a diferença implica em uma relação de inferioridade e superioridade e, por conseguinte, em infelicidade.
Esse é o ponto central da conversa que começa a revirar a vida de D-503, logo no segundo capítulo.
Ah sim, é claro! — ela gritou (foi uma transmissão de pensamentos desconcertante: ela — quase exatamente com as minhas palavras — o que eu tinha escrito antes do passeio). — Entende, até os pensamentos. Isso é porque ninguém é “um”, mas “um dos”. Nós somos tão iguaizinhos…
E nessa conversa sobre diferenças, ela chama atenção para as mãos de D-503, que são peludas, fogem do padrão, “parecem patas”, nas palavras do próprio D-503, que muito se envergonha delas.
A moça, no entanto, diz que essas mãos a agradam.
Minha opinião? Foi ali que ele se apaixonou por ela.
Claro que a relação de D-503 com a intrigante desconhecida que mais tarde descobrimos se chamar I-330 não se desenrolou assim tão rápido e fácil. De início ele a achava intrigante, seus traços do rosto em forma de X, o talhe esbelto, e principalmente a forma enigmática de se expressar, as previsões acertadas (nos encontraremos amanhã no auditório 12, você não vai me denunciar, etc.), negava a atração, que tinha alguma mistura de repulsa e medo. D-503 possivelmente intuía que se entregar à sedução de I-330 era um caminho sem volta, que ele trilha relutantemente, mas quando cai, perde totalmente a capacidade de resistir.
No eixo da relação de D-503 com I-330 move-se todo o restante da história. A paixão dele é um tanto obsessiva e desesperada, e pouco a pouco faz a vida segura dele desmoronar. Ele rompe as relações com seu melhor amigo, R-13, o poeta, por ciúmes, ao descobrir que ele já ficou com I-330, e com O-90, sua “ex”, já que agora só tem olhos para a outra. Ao mesmo tempo, desvia-se cada vez mais de seu modo exemplar de vida, faltando ao trabalho ou violando os mandamentos da Tábua (Скрижаль) de horários a um estalar de dedos de I-330. Ela também não se submete a ter uma relação regrada com ele. Não o visita nos dias permitidos, chama-o sempre fora dos horários livres, não esconde que quer comprometê-lo cada vez mais, e ainda pede cobertura para as escapadas dela, cuja essência ele demora a responder. D-503 não é idiota; ele entende vagamente que está sendo manipulado, e perde o sono, e sonha, coisas que nunca aconteceram com ele antes, e o deixam preocupado com sua saúde mental. Os sonhos o convencem de que ele está doente, e que suas infrações todas são motivadas pela doença que contraiu.
— É grave o seu problema! Ao que parece, você desenvolveu uma alma.Alma? Essa palavra estranha, antiga, há muito esquecida. Falávamos às vezes "vivalma", "almejar", "desalmado", mas alma— —— Isso... é muito perigoso — eu sussurrei.— Incurável. [...]
A notícia da “doença” aplaca um pouco a consciência de D-503. Tanto que ele nem teme escrever sobre tudo isso em seu diário, em meio a paredes totalmente transparentes, e móveis transparentes, que o impedem de esconder qualquer coisa. Numa ocasião em que entram no prédio dele para procurar alguém – possivelmente a própria I-330 – ele está lá escrevendo tranquilo, e precisa sentar no manuscrito para tentar ocultá-lo.
A essa altura o manuscrito já contém relatos comprometedores o bastante para fazê-lo galgar os degraus da máquina em que o Benfeitor (Благодетель) pulveriza os inimigos da coletividade, numa solenidade que remete a um sacrifício ritual. Ele já contou de suas explorações indevidas à Casa Antiga (Древний Дом), dos segredos ocultos nessa casa, do mundo do outro lado do Muro Verde (Зеленая Стена), e até já comprometeu outros em suas histórias paralelas, registrando, por exemplo, o dia em que O-90 pediu a ele para dar-lhe um filho. Ora, ser mãe ilegalmente ali era um crime tão sério quanto atentar contra a vida do Benfeitor.
Apesar de todas as violações, todavia, D-503 ainda não foi pego, e não percebe que isso se deve à proteção de terceiros, o anguloso policial S, que sempre aparece no lugar certo na hora certa, o próprio médico que dá os atestados sobre a “alma”, o próprio R-13. Ele não percebe, tampouco, que essa proteção não é concedida gratuitamente: mantém-no são e salvo porque precisam dele.
Não é possível ignorar, porém, que o plácido status quo da sociedade “ideal” está ruindo. O primeiro sinal manifesto de que as pessoas não são tão passivas e não há tanta concordância quanto parece acontece, ironicamente, no Dia da Unanimidade (День Единогласия). Algo como as nossas eleições, só que, na opinião de D-503, numa versão muito mais evoluída:
Obviamente não se parece com as desordenadas, desorganizadas eleições dos antigos, quando — que engraçado — nem sequer sabiam antecipadamente o próprio resultado das eleições. Construir um Estado com base em casualidades totalmente imprevisíveis, às cegas — o que pode ser mais sem sentido? E mesmo assim, ao que parece, foram precisos séculos para entender isso.
(Recordando involuntariamente das eleições de março de 2018 na Rússia. Certo, passou o momento geopolítico, voltemos ao livro).
Enfim, no Dia da Unanimidade, as pessoas discordam. Há quem vote contra a perpetuação do Benfeitor no poder. E, obviamente, isso causa um alvoroço, que repercute em ondas de perseguição, reação, e na decisão do governo de tomar uma decisão extremada: tratamento para quem desenvolveu almas, e também para quem não desenvolveu, de maneira preventiva.
O tratamento já existe há algum tempo e D já se deparou com ele em outras partes do livro. Inclusive, o médico parceiro do que lhe deu o atestado é totalmente a favor: toda essa rebeldia, o desejo por liberdade, que atrapalha a felicidade das pessoas, pode ser eliminado retirando-se cirurgicamente o pedacinho do cérebro onde fica a imaginação (фантазия). Uma espécie de lobotomia especial.
As crianças são levadas à força; os adultos, de início, são chamados a comparecer aos centros de tratamento voluntariamente. A maioria dos “doentes”, todavia, tem aversão a tal tratamento, inclusive D-503.
Para mim estava claro: todos estão salvos, mas para mim não há salvação, eu não quero a salvação...
Logo, porém, o tratamento se tornara compulsório, especialmente quando outro ato revela a presença de opositores na sociedade. Finalmente D-503 fica sabendo, conosco, para que o grupinho de I-330 precisava dele: a nave Integral logo realizará seu primeiro voo de teste, e os rebeldes precisam toma-la. I-330 finalmente é um pouco mais aberta com D-503, e conta quem são esses rebeldes e o que desejam. Não, eles não têm um projeto social para garantir felicidade para o ser humano. Eles querem a desordem, o movimento, estão cansados da previsibilidade do seu modo de vida. Da previsibilidade em geral.
O ser humano é como um romance: até a última página você não sabe como acabará. Se não fosse assim, nem valia a pena ler...
E, considerando o acerto dessa citação, encerro o relato da história sem contar o final. Eu já o esperava, mas mesmo assim foi triste. O mais triste sobre ele é que, provavelmente, é verdadeiro: para a fria irracionalidade, os fins justificam os meios, e por isso ela tende a triunfar sobre quem é limitado por escrúpulos sentimentais.
Nós foi escrito por Zamiátin em 1920, publicado pela primeira vez em versão abreviada em 1927, e na redação completa em 1952, saindo pela primeira vez na URSS em 1988. Sim, pouco antes da queda do regime. Diante da óbvia crítica à sociedade socialista elaborada por Zamiátin (o muro que separa a sociedade civilizada do ‘mundo selvagem’ lá fora, o Benfeitor por vezes chamado de “homem de aço”, alusão à raiz do pseudônimo Stálin), a obra só circulou no país em forma de samizdat, edições autônomas, contrabandeadas, por vezes copiadas de forma manuscrita, até a crítica parar de doer.
Sabe o boato de que Orwell teria se inspirado neste livro para criar seu 1984? Pode confirmar. Orwell, que era comunista (participou na guerra civil espanhola e tudo), um tanto desapontado com a URSS, leu o livro de Zamiátin e escreveu seu furioso “1984”, que foi publicado em 1949, e, graças à maravilhosa ironia do destino, hoje se aplica perfeitamente à dinâmica das sociedades capitalistas.
As semelhanças entre os livros são evidentes (o que até me desapontou um pouquinho com o querido Orwell): a importância de uma mulher para ‘desviar’ o protagonista, a sociedade coletivamente estruturada, isolada, o Big Brother vs. o Benfeitor, as teletelas vs. as casas de vidro, e, em certa medida, o final…
Nós é um livro forte. O que mais me impressionou nele foi quão bem desenhados são os personagens. Eles saltam das páginas, conseguimos imaginá-los claramente, a despeito das escassas descrições físicas, e as personalidades deles influenciam o desenrolar do enredo. Nas distopias clássicas, o foco costuma estar nas sociedades retratadas, e os indivíduos só têm relevância na medida em que se sentem deslocados naquele modo de vida. Mas em Nós, o mundo interior de D-503, sua mistura de ingenuidade e perspicácia, são de extrema importância para a história.
Uma das cenas mais tocantes é quando ele se desaponta com a I-330, ao finalmente entender que estava sendo usado. Na onda de decepção que o abate, ele deixa escapar para o leitor que gostaria de ter uma mãe, alguém para quem ele não seria “o construtor do Integral” ou qualquer outro dos seus papéis sociais, em essência, alguém que o amasse sem motivo, independente das conquistas e ações dele.
No fundo, esse é o desejo oculto essencial de cada um, revelado pelo olhar agudo do autor.
Olá!
ResponderExcluirLi uma vez uma outra resenha sobre Nós (versão da Aleph) e fiquei muito interessada nesse livro, mas não sabia ter sido ele a inspiração para 1984, que estou devendo uma releitura, pois já faz uns bons dez anos desde que o li.
Adorei sua resenha! Muito completa e instigante. Fiquei bem chocada ao saber que você lê russo, parabéns!! Parabéns mesmo! =D
Livre Lendo
Obrigada, Andreia! ^_^ Eu leio em russo sim, e traduzo poemas, contos, ensaios... A maioria está postada aqui no blog :)
ExcluirEu li 1984 faz uns dez anos também, no ensino médio, um pouco depois de ler A Revolução dos Bichos (que amo ainda mais), e reli um pedaço na faculdade.
Nós é muito bom, a hora que tiver oportunidade de ler, se quiser voltar aqui pra dizer o que achou, se sinta super bem-vinda!