Desde o ano passado que
venho revisitando algumas obras do Dostoiévski desta compilação
abaixo , obras que devorei em português muito tempo atrás , e minha
primeira leitura deste ano foi uma delas : O Duplo (Двойник ).
Li esta novela há
muito tempo e mal lembrava o enredo , o que me deu a oportunidade de
apreciar a leitura como se fosse a primeira vez .
Cabe avisar que muitos
detalhes da história serão mencionados nessa resenha , para que eu
possa explorar minhas teorias sobre sua interpretação , então
leia -a por sua conta e risco .
O Duplo pode
ser considerado uma tragicomédia que brinca com os limites do
fantástico . Isso e o fato de a novela ser protagonizada por um
“pequeno homem ” (malenkii tchelovek) — um
funcionário público sem grande expressão social, com todos os
complexos que essa condição acarreta à sua personalidade —
fazem com que o livro tenha uma pegada gogoliana .
Quando somos
apresentados ao senhor Goliádkin, ele está de muito bom humor.
Prepara -se para uma ocasião especial. Do que se trata , não sabemos ,
mas é visível que ele apostou todas as suas fichas no sucesso desse
dia . Há conversas meio suspeitas sobre uma carruagem , uma libré ,
roupas elegantes e uma carteira cheia de dinheiro que nos fazem
pensar em qual seria a tramoia em que o herói está metido . Essa
impressão permanece enquanto ele desfila pela cidade , todo na beca ,
e negocia a compra de muitos itens de luxo . Seria Goliádkin um
estelionatário ?
Nossa especulação é
interrompida , porém , quando Goliádkin , sem quê nem porquê ,
resolve visitar um médico . O médico já o conhece de uma consulta
anterior em que receitou um preparado , e não parece contente em
revê -lo. Não entendemos muito bem o que “nosso herói ” —
como o narrador gosta de chamá -lo — faz ali . No fundo parece
que só quer alguém com quem desabafar . Amigos, pelo jeito , ele não
tem .
Logo somos jogados de
volta na trilha principal da história e — por umas pistas
colhidas na consulta — descobrimos qual é o objetivo do
senhor Goliádkin : ele caprichou no visual porque está interessado
na filha do seu antigo benfeitor , Olsufii Ivánovitch , e pretende
demonstrar suas posses e sua pose na festa de aniversário dela ,
naquela tarde .
Encontro de |
No dia seguinte ,
Goliádkin vai trabalhar preocupado com o efeito que seu
comportamento do dia anterior teria tido nos colegas . Para sua
surpresa , ele não ouve nenhum comentário a respeito da expulsão da
festa ; mas o ontem desagradável se faz presente para ele quando
descobre que admitiram , no mesmo setor em que ele trabalha , o sujeito
que ele encontrara na ponte . O homem em questão o assustava por ser
seu sósia perfeito , como se fossem gêmeos idênticos . Até a roupa
é igual . E, no entanto , ninguém parece notar a semelhança antes de
o próprio Goliádkin apontá -la. Sondando seu chefe de mesa sobre a
identidade do desconhecido , ele descobre que o homem tem o mesmo
sobrenome dele e que também não é de São Petersburgo , tendo vindo
da província .
Essa atitude , como o
próprio Goliádkin intuíra , acaba se provando um grande erro .
Pelo resto da história ,
acompanhamos o impostor tomar pouco a pouco a vida do “nosso
herói ”. Rouba-lhe o relatório e o louvor da chefia … com seus
hábitos extrovertidos e lisonjeiros , conquista os colegas de
trabalho do Iákov Petróvitch original… e , ao que parece , tece
intrigas pelas costas do herói , difamando -o e aproveitando a
semelhança física para cometer atos desonrosos e colocá -los na
conta (às vezes literalmente ) do Goliádkin -mais -antigo .
De enrascada em
enrascada , a vida do Goliádkin -original vai ladeira abaixo , seja por
causa de complicações externas ou de suas próprias decisões
impulsivas e desesperadas , até que o vemos partir , numa reprodução
da cena “barrados no baile ”, sob a escolta do médico lá do
começo da novela , a toda evidência sendo levado para um hospício .
Em sua opinião ,
Goliádkin foi finalmente derrotado pela perseguição implacável de
seus inimigos … mas as nuances da história nos sugerem uma
explicação diferente .
O. Markina. “ |
Dois homens ou duas personalidades ?
Digno do nome O
Duplo , o final do livro é dúplice , ambíguo . Como a história
é narrada toda do prisma do “nosso herói ”, é a versão dele
que lemos , e o autor não deixa claro se essa versão é a
verdadeira . Pode ser que sim — histórias semelhantes
acontecem pelo mundo , raramente , mas acontecem , como
diria Gogol.
No entanto , a forma
quase mágica com que o duplo aparece em todo lugar onde entra o
“nosso herói ” nos faz suspeitar que há algo de podre
no reino da Dinamarca. E, enquanto Goliádkin se tortura ,
tendo pesadelos com a cidade cheia de cópias dele cometendo atos vis
que acabam por ocasionar a prisão de todas as cópias , ficamos
cogitando se o duplo existe mesmo .
Guarda |
O interesse de
Dostoiévski por personagens com problemas de saúde físicos e
psicológicos transparece em muitas das suas obras . Na man das
vezes , no entanto , esses transtornos não são formalmente
identificados — até porque a psicologia só veio a existir
formalmente como ciência (1879) bem no fim da vida de Dostoiévski
(1821 – 1881) — , e só pelas características dos personagens
podemos vislumbrar a presença de narcisismo , complexo de
inferioridade e outras neuroses em alguns deles.
O médico , no entanto ,
com alguma habilidade , entrando na conversa dele , consegue arrancar
informações soltas . Um farmacêutico que não sabe a quem deve
honrar … um jovenzinho que acha que já pode casar … a filha do seu
benfeitor … intrigas , intrigas dos seus inimigos , que espalharam o
boato de que ele tinha jurado se casar com uma cozinheira … imagine
só , uma cozinheira ! (Mania de perseguição , outro sintoma típico
de esquizofrenia ). Mas ele não é como seus inimigos , dado a gastar
as solas nos salões . Não tem muitas qualidades , mas ama
sinceramente , e o principal, não é um intrigante!
E Goliádkin acaba indo
embora sem dar chance de o doutor desvendar seu problema , quanto mais
resolvê -lo.
Mais tarde , quando
Goliádkin finalmente se dirige ao evento para o qual se preparara
por tanto tempo, transbordando de ansiedade , não o deixam entrar .
Imagine-se o impacto que essa contrariedade totalmente inesperada
(afinal , ele achava que , naquela casa, ele era praticamente da
família ) teve na mente explodindo de ansiedade de Goliádkin? Mas
não parou por aí . Ele acaba entrando de penetra na festa … só
para se atrapalhar e ser expulso de maneira ainda mais embaraçosa .
Penso que essa segunda
vergonha foi mais do que Goliádkin conseguiu suportar , e ali ele
sofreu um colapso . O transtorno
dissociativo de personalidade , antigamente conhecido como dupla
personalidade , surge justamente como reação a um trauma, para
ajudar alguém a evitar memórias ruins. A pessoa desenvolve uma
segunda identidade , ou até várias outras , que podem ou não ter
nome, histórico e características de personalidade diferentes do
seu eu original.
O duplo — que ,
segundo o protagonista , ele já vinha pressentindo e tendo a
impressão de vislumbrar aqui e ali — finalmente se
materializa . É simbólico que esse capítulo acabe com Goliádkin
encontrando o duplo em seu próprio apartamento , mas o seguinte já
comece com ele acordando , sem sinal do duplo no quarto, e não
saibamos como é que ele saiu , se saiu , se conversaram .
No outro dia , quando
Goliádkin acha que todo mundo estaria falando do seu escândalo , não
escuta nenhum rumor. A memória é bloqueada pelo aparecimento do
duplo no trabalho . O transtorno cumpriu o seu papel .
Os sinais de
esquizofrenia que Goliádkin apresentava desde o começo também vão
se agravando . Ele sofre lapsos de memória e de consciência . Está
cada vez mais convencido de ser vítima da armação de seus
inimigos . E ora o cabeça dos intrigantes é seu chefe Andrei
Fillípovitch , ora é a dona de pensão com quem pelo jeito ele
prometeu , mesmo , se casar , ora é o Goliádkin-falso … As
responsabilidades voam de um para o outro dependendo do nível de
animosidade de Goliádkin para com cada um no momento.
E é assim que ele vai
parar no cenário final da história — o mesmo em que ocorreu seu
colapso , num belo encerramento do ciclo — onde lhe prestam , afinal ,
socorro profissional . Vê -se que as pessoas presentes parecem entre
curiosas e apiedadas dele . Quem ele tomava por inimigo na realidade
estava , muito provavelmente , tentando lhe ajudar , inclusiva seu
criado Petrushka, que passa uma conversa no patrão enquanto vai
buscar reforços no andar de baixo do prédio para impedi -lo de
cometer a besteira de ir atrás de Klara Olsufievna por causa da tal
“carta”, provável fruto de um delírio .
Um último apontamento :
é curioso que Goliádkin nunca consiga chamar o duplo pelo nome,
quando tenta pedir providências contra ele aos seus superiores . Ele
se refere ao suposto impostor como a “pessoa conhecida ”
(izvestnoe litso ), e nisso acaba por ofender os chefes , que
não interpretam mal a quem alude Iákov Petrovitch com suas
insinuações .
É verdade que o herói
tem , de modo geral , um modo fragmentado de falar ; mas será que , para
além do efeito cômico , sua dificuldade em mencionar o nome do seu
atormentador não se deve ao fato de, no fundo , ele ter consciência
de que esse atormentador não existe — de que esse atormentador
é ele mesmo ?
E essa , na minha
interpretação , é a grande sacada do livro . Não faço ideia se
Dostoiévski quis deixar essa mensagem nas entrelinhas , mas eu a
captei : no fundo , seu pior inimigo e a única pessoa que realmente
consegue arruinar sua vida é você mesmo .
BÔNUS: O Duplo (2013, Richard Ayoade)
Logo depois de ler o
livro , lembrei que tinham feito um filme baseado na obra , com o ator
que interpretou o Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg), e resolvi que ,
já que eu estava com tudo fresco na mente , não custava assistir e
avaliar a adaptação . Aqui vai o trailer:
Eu já tinha uma noção
de que o filme se aferrava apenas de leve à novela dostoievskiana ,
mas, mesmo assim , esperava mais dele .
O cenário
futurista -antiquado , numa mistura de década de quarenta com década
de oitenta e um cheiro de ficção científica , a iluminação
escura , as músicas japonesas em momentos inesperados e a bagunça
que fizeram com as mudanças no enredo tornaram a obra mais confusa
do que o livro já é. Aparentemente , não fui só eu (e meus irmãos ,
que assistiram comigo ) que tive essa impressão . Basta dizer que o
primeiro comentário ao trailer de O Duplo , no YouTube, é :
QRIA DEIXAR MEUS MAIS SINCEROS, N ENTENDI P**** NENHUMA E ASSISTI
DUAS VEZES.
É verdade que fica
difícil transmitir a essência de um personagem que fala de maneira
bastante entrecortada e que no livro conhecemos primordialmente por
fluxos de pensamento . Todavia , algumas adições no roteiro
facilitaram esse desvirtuamento : a mãezinha no asilo , cujo dono
explora Simon sem piedade e sem um pio por parte do rapaz ; a própria
personalidade da mãe , que é mais uma na fila dos que humilham o
protagonista , mas que ele , ainda assim , não deixa de amar e visitar ;
e , por fim , toda a história romântica dele com a moça da
copiadora .
Os roteiristas criaram
um romancinho -de-amor -puro bem à moda anglo-saxônica para Simon;
mas, no livro , as coisas não são tão preto no branco . Não sabemos
qual o motivo real do interesse de Iákov Petróvitch em Klara
Olsufievna . Pode muito bem ser um interesse mais social e até
financeiro que romântico , ou uma mistura dos três . Tanto assim que ,
no auge da sua loucura , quando acha que ela quer fugir com ele e se
põe a esperá -la no pátio , Goliádkin é rápido em julgar e
condenar o comportamento da moça , assim que o frio começa a pesar e
o cocheiro a incomodá -lo.
Fora que , no filme , o
núcleo romântico , que é apenas um dos problemas de Iákov
Petróvitch , passa a ser seu problema principal.
Ainda assim , pelo que
eu vi por aí , a avaliação do filme oscila entre 3 e 4 estrelas de
cinco .
E
nos vemos logo mais , espero , com uma resenha de Memórias no Subsolo
ou de O capote, duas leituras do ano passado cujo comentário estou
devendo por aqui .
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