Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado.
O livro já ganhou
diversas traduções para o português, diretas e indiretas, sob nomes variados,
tais como “Memórias do subsolo” (traduzido por Boris Schnaidermann, Editora 34,
publicada em 2000, edição usada como referência para as citações nesta resenha,
com exceção das constantes nas imagens), “Notas do subsolo” (Maria Aparecida
Botelho Pereira Soares, LPM Pocket, 2008), “Diário do subsolo” (Oleg de Almeida,
Martin Claret, 2012), “Notas do subterrâneo” (Moacir Werneck de Castro,
Bertrand Brasil, 1986), “Cadernos do subterrâneo” (Nina Guerra e Felipe Guerra,
Assírio Alvim, 2007) e até “A voz subterrânea” (Natália Nunes, Editorial Bruguera,
1972).
Tantas traduções
atestam a popularidade do livro. Não foi sempre assim: publicada em 1864 na forma
de folhetins na revista Epókha (Эпоха),
“Época”, que o próprio Dostoiévski e
seu irmão Mikhail editavam, a novela não chegou a sair em formato de livro com
edição própria durante a vida do autor. Foi só no final começo
do Século XX que Memórias do subsolo caiu nas graças
dos simbolistas russos da Era de Prata e, mais tarde, também dos
existencialistas, ganhando notoriedade por sua profunda análise do indivíduo.
De fato, em que pese a
excepcional capacidade de observação e retratação dos paradoxos do ser humano
que Dostoiévski demonstra em toda a sua obra, neste livro ele realmente desce
ao “subsolo” da alma humana, presenteando-nos com as memórias de um personagem
sem nome, presa de um obcecado exercício de autoanálise.
Essa característica do
narrador-protagonista transparece até na estrutura do livro. Ele começa a
redigir suas memórias a fim de confessar um incidente que pertence à categoria
das “coisas que o homem tem medo de desvendar até a si próprio”, a saber, o dia
em que se convidou para a festa de uns ex-colegas de turma que claramente não
desejavam sua presença, terminou a noite em um prostíbulo, passando uma lição
de moral na prostituta que contratara, Liza e, depois de oferecer-lhe ajuda
para deixar aquela vida, acaba dando para trás e humilhando-a ainda mais.
Antes de abordar os
eventos, porém, ele decide dar uma pequena introdução sobre si. Entre
preâmbulos e justificativas e desmentidas e desafios, essa introdução vai
crescendo e assume dimensões desproporcionalmente grandes em relação às
memórias em si. Assim, os fatos, que deviam figurar no centro do relato, restam
legados à posição periférica de confirmar as ideias longamente desenvolvidas na
primeira parte.
Reforça-se, assim, o
retrato que o próprio autor nos passa de si mesmo como homem de ideias que, de
tanto pensar, nem consegue se tornar um homem de ação:
Não consegui chegar a nada, nem mesmo tornar-me mau: nem bom nem canalha nem honrado nem herói nem inseto. Agora, vou vivendo os meus dias em meu canto, incitando-me a mim mesmo com o consolo raivoso — que para nada serve — de que um homem inteligente não pode, a sério, tornar-se algo, e de que somente os imbecis o conseguem.
O conformismo que
transparece nesse trecho dá o tom das memórias. É um conformismo duro e
revoltado, prenhe dos conflitos internos que, por sua vez, sustentam o estado
de paralisação do personagem, numa representação da máxima de que a soma de
todas as forças é igual a zero. Ele aparece desde o primeiro parágrafo do
livro, em que o homem do subterrâneo se resume e se desvenda indiretamente:
Sou um homem doente… Um homem mau. Um homem desagradável. Creio que sofro do fígado. Aliás, não entendo níquel da minha doença e não sei, ao certo, do que estou sofrendo. Não me trato e nunca me tratei, embora respeite a medicina e os médicos. Ademais, sou supersticioso ao extremo; bem, ao menos o bastante para respeitar a medicina. (Sou suficientemente instruído para não ter nenhuma superstição, mas sou supersticioso.) Não, se não quero me tratar, é apenas de raiva. Certamente não compreendeis isto. Ora, eu compreendo. Naturalmente não vos saberei explicar a quem exatamente farei mal, no presente caso, com a minha raiva; sei muito bem que não estarei a “pregar peças” nos médicos pelo fato de não me tratar com eles; sou o primeiro a reconhecer que, com tudo isto, só me prejudicarei a mim mesmo e a mais ninguém. Mas, apesar de tudo, não me trato por uma questão de raiva. Se me dói o fígado, que doa ainda mais.
A relação dele com a
doença física espelha perfeitamente sua relação com seu mal espiritual ou
psicológico: ele sabe que está mal, sofre cronicamente em virtude disso, sabe o
que precisaria fazer para aliviar sua dor, e que ele é o mais afetado pela
decisão de permanecer doente, mas escolhe
permanecer mal. De raiva.
Raiva de quem? Dos
outros, de si. A relação do homem do subterrâneo consigo mesmo e sua relação
com os outros estão misturadas de tal maneira que é difícil distinguir qual
delas deu largada no ciclo de influência mútua. De toda a postura dele, tanto
nos eventos narrados, quanto no monólogo do começo, dá para perceber que esse
homem necessita desesperadamente da aprovação dos outros... ao mesmo tempo em
que a repudia com desprezo. Em parte, porque considera esse sentimento indigno
— o que também pode ser disfarce para o despeito que lhe causa ter sido privado
desde cedo dessa aprovação. E, em parte, porque de fato não tem muito apreço
pelas pessoas cuja aprovação deseja, considerando-se sinceramente mais
inteligente e melhor que elas. Tal atitude se estende para os poucos que se
aproximam dele com intenções amistosas, sobre os quais ele logo deseja exercer
poder para apaziguar sua vaidade ferida, manipulando-os e tiranizando-os até
afastá-los de si.
Essa colossal vaidade
é sua principal característica — chegando ao ponto de fazer com que alguns analistas modernos o
classifiquem como narcisista. Ela está por trás da maioria de suas atitudes
tolas, que o impedem de deixar alguma ofensa passar, e o impelem a vinganças
desastradas que causam mais dano à própria autoestima dele do que a seus
“inimigos”. Ela também está na base de sua explosão quando Liza vem procurá-lo
em casa, atendendo a seu convite impensado, como se extrai do monólogo dele na
ocasião:
Mas será possível que até agora você não tenha compreendido que eu nunca lhe perdoarei o fato de me ter encontrado com este roupãozinho, quando eu me lançava sobre Apolón, como um cachorrinho raivoso? O ressuscitador, o ex-herói, atira-se como um vira-lata vagabundo e cabeludo contra o seu criado, e este ri dele! E nunca desculparei também a você as lágrimas de há pouco, que não pude conter, como uma mulher envergonhada! E também nunca desculparei a você as confissões que lhe estou fazendo agora! Sim, você, unicamente você, deve responder por tudo isto, porque você é que apareceu na minha frente, porque eu sou um canalha, porque sou o mais repulsivo, o mais ridículo, o mais mesquinho, o mais estúpido, o mais invejoso de todos os vermes sobre a terra, que de modo nenhum são melhores que eu, mas os quais, o diabo sabe por quê, nunca ficam encabulados; e eu vou receber assim, toda a vida, piparotes da primeira lêndea que aparecer — é uma característica minha!
Tais hábitos o lançam
numa espiral de isolamento. Quanto mais ele afasta as pessoas de si, mais tempo
passa em sua própria companhia, e vai se tornando seu único assunto e objeto de
análise, o que faz com que ele se enxergue mais claramente em todos os
detalhes, inclusive os defeitos, espicaçando ainda mais sua vaidade e retroalimentando
o ciclo.
O subsolo — além do
seu significado quase literal, já que o protagonista mora mesmo em um quartinho
recluso quando o encontramos — é o habitat
social do narrador, uma espécie de rato humano.
Dostoiévski
considerava que as circunstâncias de seu tempo favoreciam o surgimento de tais
mutantes morais. Veja-se a nota introdutória do livro:
Tanto o autor como o texto destas memórias são, naturalmente, imaginários. Todavia, pessoas como o seu autor não só podem, mas devem até existir em nossa sociedade, desde que consideremos as circunstâncias em que, de um modo geral, ela se formou. O que pretendi foi apresentar ao público, de modo mais evidente que o habitual, um dos caracteres de um tempo ainda recente. Trata-se de um dos representantes da geração que vive os seus dias derradeiros.
O pequeno homem — um dos tipos
favoritos da literatura russa desde Gogol e Púchkin e que já protagonizara
outras novelas de Dostoiévski, como Gente
pobre, Noites brancas e O duplo — serve de
matéria-prima para o homem do subterrâneo. Mas, ao contrário do pequeno homem
clássico, o narrador de Memórias do
subsolo não é um coitadinho emocionalmente conformado com sua condição. A
radiação das novas ideias — o racionalismo, o determinismo e tantos outros
-ismos — incidiu sobre ele, transformando-o em um mutante moral, que ao mesmo
tempo molda seus pensamentos de acordo com essas correntes, e se revolta visceralmente
contra elas e as restrições que colocam ao livre arbítrio, ironizando-as em seu
monólogo inicial.
Mais ainda: então, dizeis, a própria ciência há de ensinar ao homem (embora isto seja, a meu ver, um luxo) que, na realidade, ele não tem vontade nem caprichos, e que nunca os teve, e que ele próprio não passa de tecla de piano ou de um pedal de órgão; e que, antes de mais nada, existem no mundo as leis da natureza, de modo que tudo o que ele faz não acontece por sua vontade, mas espontaneamente, de acordo com as leis da natureza. Consequentemente, basta descobrir essas leis e o homem não responderá mais pelas suas ações, e sua vida se tornará extremamente fácil.
Como se vê, além e
acima de pequeno homem e meio literato (ele escreveu uma novela caricaturando
seu inimigo), como o Sonhador de Noites
Brancas ou o Ivan de Humilhados e
ofendidos, o homem do subterrâneo é um revoltado (como Raskolnikov,
Svidrigailov de Crime e Castigo, Ivan
Karamazov e Smerdiakóv de Os irmãos
Karamazov, Stavróguin de Os demônios e Ippolit de O idiota) e um pensador (novamente como
Ivan Karamazov, ou Kiríllov de Os
demônios), o que o coloca no início de dois róis de importantes personagens
que viriam a figurar nas cinco maiores obras de Dostoiévski, publicadas entre 1866
е 1880. Esse é um dos motivos para que o
livro seja considerado uma espécie de obra de transição entre a fase inicial do
autor e sua fase mais madura.
Outro motivo é que,
nas Memórias do subsolo, as
digressões filosóficas ganharam um espaço bem maior do que nas obras anteriores
do escritor russo. Essas digressões, sempre habilmente entremeadas na história,
são outra marca de suas cinco obras-primas. Desde as Memórias, o publicista Dostoiévski escreve com mais ousadia de
dentro dos romances, ventilando vez ou outra, pela boca de seus personagens, suas
próprias opiniões sobre os problemas de sua época.
Chegamos a tal ponto
que a “vida viva” autêntica é considerada por nós quase um trabalho, um
emprego, e todos concordamos no íntimo que seguir os livros é melhor.
Como depois os
simbolistas russos e os existencialistas ressaltaram, porém, o autor acabou
descrevendo algo muito mais amplo que o produto de uma época. Os paradoxos do
homem do subterrâneo são intrinsecamente humanos.
Dentre os analistas da
obra, há quem identifique o subsolo com uma
dimensão interior do próprio homem, a que cada um de nós precisa descer
no processo de formação de sua personalidade, num exercício de introspecção e
autoanálise, pois é só lá que nos encontraremos com nossas verdadeiras faces.
O grande enigma,
porém, reside em como sair do subsolo. É possível, ou esse mergulho no abismo
de si mesmo é sempre uma viagem sem volta, como no caso do homem do
subterrâneo?
Ora, se o subsolo
somos nós mesmos, o caminho para fora dele passa por sair de si, de certa
forma, o que só pode ser feito por meio do amor ao próximo — ou do altruísmo,
para quem não aprecia o eco religioso da primeira expressão usada.
Pode-se traçar um
paralelo aqui com o ensaio “Hamlet e Dom Quixote”, de Turguêniev, em que ele
compara os dois personagens e os princípios que representam — egoísmo vs.
altruísmo, autoanálise vs. Sacrifício. Embora admita a necessidade de um pouco
de Hamlet, já que é necessário que o homem se conheça e reflita sobre si, Turguêniev
aponta o potencial paralisante desse ciclo, pois o princípio sacrificial que
impele à ação vem, com frequência, de impulsos irrefletidos.
Nota-se que o homem do
subterrâneo teve uma chance de escapar do labirinto por meio do altruísmo — e
fugiu dela. Isso ainda o consome dezesseis anos depois, motivando-o a escrever
as memórias.
Trata-se do incidente
com a prostituta Liza.
Efemeramente, ele
chegou a se interessar pelo destino dela.
Num contexto
contraditório e meio hipócrita, claro, já que tinha acabado de usufruir de seus
serviços, e talvez movido pelos sentimentos que ele mesmo confessa depois ter
tido — tédio, desejo de dominar alguém de repassar a ofensa... Talvez não; nós
lemos seus sonhos ternos sobre ela, que alternam com o medo de que ela venha
realmente à casa dele, e sabemos — desde a parte um do livro — do gosto que ele
tem por se pintar nas tintas mais lúgubres. Talvez nos seus vinte e poucos anos
ele ainda fosse capaz de amar, embora tortuosamente, se aos quarenta já não
conseguia mais.
Se era ou não, se amou
ou não Liza, não importa — o fato é que o bem de outra pessoa ocupou o centro
dos pensamentos dele por alguns momentos, e isso gerou uma tênue possibilidade
de mudança em sua vida. Que ele não abraçou por ser vítima do determinismo que
ele mesmo critica e que, no entanto, é tão presente nos livros de Dostoiévski e
na literatura russa como um todo.
O homem do subterrâneo
acaba por se acovardar, deixar sua vaidade ferida comandar sua reação,
irritar-se ainda mais por Liza lidar com a situação de forma mais madura e
compassiva que ele, mesmo depois que ele a humilha. E se vê liquidado,
possivelmente tendo liquidado Liza junto, ao apagar com crueldade a pequena
chama de esperança numa redenção que fizera nascer no coração desconfiado da
moça, contra a vontade dela.
Mas tudo bem, que seja
assim nos livros. Personagens servem para isso mesmo: ir às últimas
consequências, e nos mostrar o fim de algum caminho sem que precisemos trilhá-lo.
Ou, se decidirmos trilhá-lo, ao menos já saberemos o que nos aguarda.
Estou lendo atualmente. É diferente da escrita de Os Demônios e Os Irmãos Karamázov, mas sendo Dostoiévski vale a pena ler até o final!
ResponderExcluirEsse livro tem um estilo todo próprio. Da primeira vez que eu li, não gostei. (Também foi uma tradução ruim, do francês). Agora reli mais velha e o livro já ganhou uma camada mais profunda de sentido. Mesmo assim ele tem sabor bem amargo...
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