BLOG PARA DIVULGAÇÃO DA LITERATURA RUSSA AOS FALANTES DE LÍNGUA PORTUGUESA.

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Niétotchka Niezvânova, um dos poucos livros de Dostoiévski que eu ainda não tinha lido, se destaca na obra do autor por alguns motivos.

O primeiro salta aos olhos desde a primeira linha: a narração do ponto de vista feminino. Quem está familiarizado com a obra do escritor deve lembrar que a maioria dos seus narradores são homens, e muitos com traços autobiográficos.

Aqui, porém, quem narra é Niétotchka, uma menina, ou antes, uma mulher, que nos conta sua história desde que se tem por gente. E isso é significativo a ponto de o livro ter ganhado o subtítulo “História de uma mulher”, quando de sua publicação em revista. Analisando-se esse subtítulo em conjunto com o título, tem-se uma combinação interessante. Isso porque “Niétotchka” remete à palavra niét (нет), “não” em russo, e o sobrenome Niezvânova também tem um prefixo negativo e uma raiz ligada ao verbo “chamar” (zvát’, звать). Então a mulher do subtítulo — uma possível representação da Mulher em geral  —  é basicamente um nada sem nome.

Não é logo que Niétotchka conquista o protagonismo sequer de sua própria história. Logo nos primeiros parágrafos do livro, ela faz um desvio e acaba dedicando toda a primeira parte a falar de seu padrasto. A moça justifica seu proceder afirmando que essa pessoa teve um papel crucial nos caminhos que a vida dela tomou mais tarde. E, à medida que conhecemos o tal padrasto, o músico Egor Petróvitch Efímov, temos que concordar, no mínimo, que vale a pena escutar sua história.

Filho de músico, Efímov praticamente nasceu na orquestra privada de um proprietário rural com pendores artísticos. Assumiu, ainda jovem, o papel de clarinetista nessa orquestra, só vindo a florescer, porém, quando aprendeu a tocar violino com um mestre italiano demitido da propriedade vizinha por comportamento inadequado. O tal mestre, ao morrer, legou-lhe o violino, e após receber o instrumento, o rapaz começou a manifestar certa estranheza no comportamento. Foi preso, investigado, inocentado, solto, mas bem no momento em que se esperava que demonstrasse gratidão a seu patrão e protetor, que lutou para mantê-lo livre, ele foge e alega tratamento indigno, revelando perante um artista estrangeiro em visita ao vizinho o que ninguém ainda conhecia: seus talentos de violinista.

Revela também insuspeitada suscetibilidade e capricho, e, depois de mais alguns desentendimentos, decide partir para a capital, procurar os grandes palcos que seu talento merece. E parte, com a benção do patrão e um conselho para estudar continuamente e não se entregar à bebedeira.

Conselho que ele, como era de se esperar, logo esquece. Para fazer-lhe justiça, ele tenta perseguir sua carreira musical no começo. Une-se, para dividir o aluguel, ao jovem estudante de música B., que tem o perfil típico do alemão nas histórias russas —  limitado e diligente  —  e se impressiona com o amor à arte que Efímov demonstra em seus picos de entusiasmo.

Mas com a demora dos resultados esperados, Efímov vai se tornando mais relapso em seus esforços. Conforme Niétotchka nos explica em outro momento:

O lema dele era: aut Caesar, aut nihil[1], como se alguém pudesse se tornar César assim, de repente, num instante. Sua sede era de glória. E se esse sentimento se torna o único e principal motor do artista, esse artista já nem é mais artista, porque já perdeu seu instinto artístico primário, isto é, o amor à arte só porque ela é arte, e não algo mais, não a glória.

Como Efímov não acha dignos de sua grandeza os trabalhinhos disponíveis para músicos desconhecidos, ele, via de regra, não os aceita. B., pelo contrário, segue firme estudando e aceitando qualquer oportunidade de tocar em festas modestas ou dar aulas de música, para se sustentar, tornar-se conhecido e ganhar experiência.

Nesse ponto da história, evidencia-se tanto o tema que o autor está trazendo à nossa atenção, quanto a sua abordagem, que remete à parábola dos talentos (Evangelho de Mateus, 25:14-30 e Evangelho de Lucas, 19:12-27). A história bíblica fala de um patrão que dá a seus servos alguns talentos (à época, uma moeda), antes de partir em viagem. Quando ele retorna, alguns servos negociaram com a quantia e a multiplicaram; um deles a enterrou, para devolvê-la ao patrão intacta. O patrão não fica feliz com o comportamento desse servo, e retira-lhe até o talento que dera inicialmente, dando-o ao que mais multiplicou.

Vemos o mesmo processo acontecer na vida de Efímov, que “enterra” seu talento (ele chega a trancar o violino a chave e escondê-lo), com receio de desperdiçá-lo em eventos indignos, e acaba ficando enferrujado. B., por outro lado, mesmo tendo pouco talento inicial em comparação com o amigo, usa-o, usa-o e o multiplica pelo esforço, alcançando por fim reconhecimento e uma boa posição.

Carregando o amigo nas costas por um bom tempo e aguentando desaforos dele, um dia B. se farta da situação, e rompe com Efímov. Anos depois, já bem-sucedido, reencontra o amigo transformado quase que em um mendigo, e descobre que ele abandonou de vez a arte desde que se casou.

Família pobre (Бедное семейство). Iliá Glazunov.


E é só aí que a própria Niétotchka aparece na história. Ela entra na vida de Efímov como apêndice de sua mãe, nascida do primeiro casamento da pobre mulher com um idoso. Quanto às segundas núpcias, Niétotchka nos diz que elas não fizeram sua mãe feliz, embora contraídas por amor. E os motivos ficam claros assim que ouvimos Efímov explicar seu casamento para B.. A mulher veio atrás dele, ele não tinha o que comer, casou-se. Após ter consumido todo o pecúlio dela, não contribuindo com um rublo em casa e sendo reprochado por isso, o homem usa esse “ambiente opressivo” como sua nova desculpa para não se ocupar da música. Segundo ele, só quando a megera que o aflige morrer, ele estará livre para se dedicar à sua arte  —  e então o futuro e a fama brilharão para ele.

Essa fantasia constitui o cerne da parte um do livro, isso porque Niétotchka acaba por entreouvi-la e passa a acreditar nela também. Ela nos conta com alguma culpa que amava mais o pai (ela não sabia ainda que Efímov era seu padrasto) do que a mãe. E, por isso, fazia o que fosse necessário para granjear seu afeto e aprovação, desde se esforçar para aprender a ler nas aulas que ele lhe dava, até desviar os suados trocados com que sua mãe a enviava à quitanda, entregando-os ao beberrão.

Esses pequenos furtos ocorrem poucas vezes, é verdade, causando crises de consciência tanto no músico quanto na enteada, que não consegue entender a razão de sua hostilidade oculta e sem motivo contra a mãe. Apesar disso, ela gasta seus dias empoleirada na janela do sótão, meio negligenciada pelos pais imersos nos próprios problemas, sonhando com o dia em que a mãe morrerá, e pai e filha partirão para viver felizes na casa em frente, com suas festivas cortinas vermelhas.

E o tempo transcorre igual para a família. Uma vez, Efímov até tenta se emendar, para agradar o benfeitor que lhe arranjou um emprego no teatro, graças à interferência de B.. Mas a esperança não dura muito. Logo ele começa a negligenciar o trabalho e andar com más companhias, é demitido e recai nos velhos hábitos. Dali é só ladeira abaixo. A motivação da vida de Efímov passa a ser fofocar a respeito de todos os músicos da cidade e estrangeiros que vêm para espetáculos especiais, desprezando as habilidades de cada um. As críticas são sempre mordazes, mas não raro também verdadeiras, e o homem ganha alguma celebridade entre a baixa camada do meio teatral, que sempre o procura para saber suas novas impressões sobre os novos artistas, jogando insinuações como quem não quer nada para colher os comentários venenosos. Depois, até esses enjoam dele, resta praticamente só um frequentador da casa, um dançarino apaixonado, porém muito ruim, a quem Efímov trata com desdém, mas gosta de manter por perto.

Mesmo sem ter quem o escute, ele continua procurando assistir as performances de todos os músicos recém-chegados, para tranquilizar sua consciência quanto à própria inatividade. Visa assegurar para si mesmo que, apesar de tudo, ainda é o melhor.

O pobre e perturbado homem considerava apenas um artista no mundo inteiro, e este artista era, é claro, ele mesmo.
Essa frase resume o personagem, ou antes, aquilo que ele se tornou. Nas palavras de Niétotchka:

Convença-o de que ele não é um artista, e digo a vocês que ele morrerá no ato, como fulminado por um raio, porque é terrível se separar de uma ideia fixa à qual se sacrificou toda a vida, e cujo fundamento é, na verdade, sério e profundo, afinal, a vocação dele, no início, era verdadeira.

E é exatamente isso que acontece. Após usar a filha de novo para roubar os últimos trocados da esposa, dessa vez não para beber, mas para assistir a um violinista famoso que chegou à cidade, Efímov sente o toque da realidade. Dois golpes recaem sobre ele ao mesmo tempo: ele finalmente encontra um artista em quem não consegue botar defeitos, para se considerar superior, e sua esposa — o suposto entrave da sua vida — falece. Tocando uma última vez, ele nada emite de original, só consegue reproduzir a melodia final do concerto que acabou de ouvir.

Então enlouquece.

Dostoiévski arremata a primeira parte com um dos parágrafos mais fortes da obra, demonstrando o efeito fatal da verdade sobre quem é finalmente obrigado a encará-la, após uma vida se abrigando na mentira.

Junto ao buraco no gelo (У проруби). Iliá Glazunov.

Niétotchka, abandonada à própria sorte, vê-se de repente no paraíso terreno para onde sempre imaginara que iria quando sua mãe falecesse: a casa de cortinas vermelhas.

Logo ela descobre que o paraíso não é assim tão feliz quanto lhe parecia, olhando de fora. Certo, ela não tem falta de nada, inclusive educação, o que já é um progresso em relação à sua situação anterior. Mas a alegria que a casa parecia ter, com seus bailes constantes, não verte para o dia a dia. Em vez de uma família unida, ali habitam três reinos separados, com seus interesses e ocupações próprias, e negociações diplomáticas para manter o equilíbrio de poderes.

De um lado, tem-se o príncipe, um senhor que a resgatou e adotou quando ela ficou sozinha no mundo. Ele é o chefe oficial da casa, mas permanece a maior parte do tempo isolado no seu canto, ocupado com seus negócios intelectuais e artísticos ou imerso em introversão.

Sua esposa, ainda relativamente jovem, tem os próprios aposentos, o próprio círculo. Nos primeiros dias após a recuperação de Niétotchka, ela traz a menina para junto de si, para exibi-la aos convidados e impressioná-los com a história triste da garota. Até faz um esforço para se apegar à órfã, mas acaba achando Niétotchka desinteressante e meio burrinha, e, quando seus convidados enjoam do novo assunto, ela não pede mais que a criança seja trazida para passar os dias com ela.

Em outra parte da mansão, habita a velha tia do príncipe, uma solteirona religiosa e severa, remanescente de linhagem nobre antiga, ainda respeitada na sociedade. Apesar de viver isolada e sair de casa quase que só para ir à missa de vez em quando, a senhora atrai gente de renome, que vem lhe fazer visitas, e por isso goza de grandessíssima influência sobre as decisões do lar.

A idosa também, ao ser apresentada à órfã, não gosta muito dela.

Gravitando entre esses três círculos de influência e fazendo o possível para agradar os três, vivem os servos e as crianças. Nos primeiros tempos da estadia de Niétotchka no palacete, ela é a única criança lá, já que os filhos do príncipe estão com sua mãe em Moscou. Recuperada, a menina ganha liberdade para explorar a casa a seu bel-prazer. De natureza quieta, Niétotchka acostuma-se a entrar em salas vazias e ficar lá sentada por horas, tentando lidar com o luto, sem nem entender direito o que se passa dentro dela.

Numa dessas ocasiões, o príncipe a encontra e, com uma ou duas perguntas compassivas, acaba dinamitando a barragem que continha a tristeza da menina, fazendo-a cair doente de novo.

Meus sentimentos possuem uma inexplicável extensibilidade, se posso me expressar assim; minha natureza é paciente até o último grau, de modo que a explosão, a manifestação instantânea dos sentimentos só ocorre quando já estão no limite.

A situação de solidão interna, em que ela vivia com os pais, não melhora inicialmente na nova casa. Apesar de gostar do príncipe, reconhecendo nele compaixão, afeição e vontade de ajuda-la, Niétotchka não o tem por perto o suficiente para formar a ligação afetiva de que carece. Ela é emocionalmente carente, com incrível potencial de apegar-se, e, nela, o amor só consegue aparecer numa forma extrema, talvez devido a uma longa repressão.

E é essa forma também que assume seu amor por Kátia, a filha do príncipe, uma menina viva, geniosa, um tanto mimada, mas com senso de justiça, que vem para a casa durante a segunda recuperação de Niétotchka.

Niétotchka e a princesa Kátia (Неточка и княжна Катя). Iliá Glazunov.

Entre elas se desenrola uma relação complicada. Niétotchka se apega à outra menina fortemente, em suas próprias palavras, apaixona-se por ela, enquanto Kátia a evita e parece até sentir alguma animosidade contra ela. Тodas as tensões e jogos sentimentais de uma relação amorosa adulta estão presentes nessa — a devoção de Niétotchka, sua suscetibilidade a qualquer gesto ou palavra de Kátia, a ansiedade relativa a tudo que a envolva... E Kátia percebe essa suscetibilidade, conscientemente provoca Niétotchka com perguntas inconvenientes ou se expondo a perigo. Só quando Niétotchka primeiro se mostra indiferente, e depois assume a culpa por uma travessura da colega, sendo castigada além da conta por acidente, a resistência de Kátia é quebrada e ela admite que já há muito amava Niétotchka também.

Por alguns dias elas se tornam unha e carne. Dormem juntas, andam de mãos dadas, enchem-se de beijinhos. Paira sobre a ligação das meninas um leve odor de homoerotismo que, sem se desenvolver, ainda assim torna a obra bastante ousada para sua época. Tais amizades-romances, aparentemente, eram comuns entre meninas criadas juntas em internatos, o que escudou a história do escândalo que certamente causaria se narrasse o mesmo relacionamento entre moças mais velhas.

A mãe de Kátia, porém, não vê com bons olhos o apego forte e repentino da filha à órfã, que ela considera esquisita, meio selvagem. Ela traz a filha para morar consigo em sua parte da casa, a fim de separar as duas, que se abatem e quase adoecem com a distância. O príncipe, sem afrontar diretamente a esposa, arranja um jeito de elas se encontrarem de vez em quando no gabinete dele, mas esse ajuste não dura muito: o filho caçula da família adoeceu em Moscou, e eles todos viajam para ficar junto do menino, prometendo voltar logo.

Não voltam. Niétotchka só reveria Kátia oito anos depois, segundo nos diz. E, para não ficar sozinha com os empregados, remanejam-na para a casa da irmã mais velha de Kátia, filha do primeiro casamento da princesa, Aleksandra Mikháilovna.



Só então Niétotchka encontra alguém disposto de fato a substituir-lhe a mãe, e com um nível de dedicação que a vida difícil da mãe biológica da menina nunca lhe permitira atingir. Apesar de contratar professores, Aleksandra Mikhailovna se ocupa pessoalmente da educação de Niétotchka, usando um método à frente do seu tempo que nos remete a Paulo Freire. Em vez de obrigar a menina a decorar conteúdo pronto e um monte de regras, Aleksandra estabelece como seu objetivo ensiná-la a pensar, apresenta as informações contextualizadas e caminha junto com a criança, apenas orientando-a de leve, até que ela consiga chegar em suas próprias conclusões sobre as coisas.

Niétotchka, sempre tão intensa em suas afeições, apega-se fielmente a Aleksandra. E sua sensibilidade faz com que perceba outra dimensão na dinâmica aparentemente feliz da casa. A moça é jovem, casada com um funcionário respeitado, os dois parecem se amar, mas há uma nota errada na relação. O homem está sempre soturno e com ares sofredores; a moça faz de tudo para agradá-lo, granjear sua aprovação, que ele concede graciosamente, mas mesmo assim ela se derrama em lágrimas volta e meia, sentindo a insuficiência de seus esforços.

Conforme Niétotchka vai crescendo, Aleksandra vai se distancia dela um pouco, talvez por estar ocupada com seus próprios filhos, ou demasiado sobrecarregada com o peso que reina na casa. Deixada às vezes à própria sorte, Niétotchka encontra a chave para a biblioteca, de onde a dona da casa tirava os livros cuidadosamente selecionados que usava nas lições.

Ela acha a chave e, mesmo se sentindo culpada, não devolve. Não consegue resistir à tentação da biblioteca, prato cheio para sua personalidade sonhadora e imaginativa. Durante anos ela se esgueira sorrateiramente para lá e lê tudo o que lhe apraz. Numa dessas incursões, encontra sem querer a solução do mistério da casa, que tanto a incomoda.

Por meio de uma carta esquecida dentro de um livro, ela descobre que sua protetora, Aleksandra Mikháilovna, teve um caso. Pelo que se extrai da carta, os sentimentos da moça pelo outro homem eram puros, e o adultério talvez nunca tenha chegado a se consumar, mas despertou comentários. O marido ultrajado, Piótr Aleksandrovitch, conquanto defendendo Aleksandra perante a sociedade, não a deixa jamais esquecer o incidente, com seus ares tristonhos que — conforme Niétotchka testemunhou — ele forjava deliberadamente antes de ir ter com ela.

A menina se revolta com essa situação que, na sua visão, é “o pecador castigando o justo”. Depois da descoberta, mal consegue disfarçar a antipatia contra Piótr Aleksandrovitch. Ele percebe, também passa a prestar uma atenção incômoda nela, e a tensão entre os dois fica tão palpável que leva Aleksandra a pensar que seu marido está interessado em Niétotchka. De acordo com seu temperamento submisso, porém, Aleksandra não se revolta; em vez disso, com insinuações confusas, faz Niétotchka prometer que cuidará dos filhos dela como se fossem seus próprios, quando ela morrer.

As coisas caminham de tal forma que Niétotchka mal consegue ficar na mesma sala que Piótr Aleksandrovitch. Para dar fim ao clima desagradável que se formou, ela cogita confessar a Aleksandra que conhece o segredo dela, reforçar sua solidariedade e pedir-lhe perdão pela invasão de privacidade. Mas, com receio de matar de vez a mãe adotiva com a revelação, desiste dos planos.

Certo dia, Piótr Aleksandrovitch encontra Niétotchka na biblioteca, relendo a carta de despedida do amante da esposa. Ele lê as primeiras linhas e identifica o gênero da epístola, mas pensa se tratar correspondência que Niétotchka recebeu de algum namorado. Ansioso por limpar a própria fama diante da esposa, livrando-se das suspeitas de traição e recuperando, assim, a superioridade moral sobre ela, Piótr nem pisca antes de levar o caso ao conhecimento da mulher, e pedir que Niétotchka seja expulsa de casa.

E então se passa um escândalo, em que Niétotchka assume todas as violações de confiança que o homem lhe imputa, tentando evitar que ele mostre a carta à esposa, que certamente a reconheceria e teria uma síncope.
Ilustração de Mikhail Roiter.



Em meio a muito debate cheio de acusações veladas, a mulher passa mal de qualquer forma, e Niétotchka vai enfrentar Piótr Aleksandrovitch, explicar-lhe o conteúdo da missiva e por que ela não queria que Aleksandra a visse. É um último ato que decide levar a cabo antes de abandonar o lar, sem destino certo. Antes que ela possa fazer isso, porém, o secretário de Piótr Aleksandrovitch vem chamá-la. E o livro acaba aí, interrompido.

Eis a segunda peculiaridade de Niétotchka Niezvânova entre as obras de Dostoiévski: trata-se de um romance inconcluso. Apesar de muito empolgado com a ideia, que achava ter potencial para salvá-lo do esfriamento do público após as críticas empolgadas a Gente Pobre, o autor não teve a chance de trabalhar Niétotchka Niezvânova até o fim porque foi preso enquanto o escrevia.

O romance foi transformado em novela sem uma adaptação própria ao formato. Existem duas versões do texto. A primeira foi publicada em revista com os subtítulos “Infância”, “Vida nova” e “Mistério” intitulando as três partes prontas. Eu li a segunda versão, a definitiva, em que Dostoiévski suprimira uma trama na segunda parte — a do órfão Lária, também adotado pelo príncipe — e fizera mais algumas modificações.

Os temas orientadores da obra permanecem os mesmos nas duas versões, porém, e podemos ver o padrão de repetição no fragmento que chegou a ser concluído.

A leitura aparece na primeira parte, em que Efímov e seu colega mau dançarino releem constantemente um romance e se emocionam sempre, identificando-se com o personagem principal; mais tarde Nétotchka faz uso da leitura para adquirir conhecimento, e para experimentar emoções além de suas possibilidades diárias, colocando-se no lugar dos personagens principais, o que pode ter exercitado nela sua já forte empatia. O livro aparece na obra como combustível do sonho, também sempre presente.

A arte — mais especificamente, a música — e o dom também têm papel de destaque no livro, com Niétotchka descobrindo em si talento para o canto, momento em que ela deixa de ser Niétotchka e passa a ser Annieta (ambos apelidos menos comuns de Anna). Descobrir-se artista e, portanto, um ser criador, transforma o nada, o não em alguém.

Da mesma forma, a questão da culpa, e da culpa feminina, mais precisamente, aparece em todo o livro. Desde Eva, desde Pandora e muitas outras figuras das civilizações antigas, a mulher carrega a culpa por tudo o que acontece de ruim com o homem, mesmo quando o próprio homem é o verdadeiro causador da desgraça. E, com a culpa, pesa sobre ela a responsabilidade de consertar as coisas.

A mãe biológica de Niétotchka tem que trabalhar para sustentar a casa, já que a responsabilizam por ter “matado” a arte e ganha pão do marido. Sua mãe adotiva é mantida de propósito acuada pelo remorso, e se vê obrigada a pisar em ovos numa relação que devia ser o seu refúgio de compreensão. Talvez tenha sido esse paralelo que involuntariamente despertou na Niétotchka crescida uma revolta contra o opressor de sua nova mãe. A sensação da desproporção do castigo, de sua desnecessidade e injustiça.

Talento, culpa e castigo são temas que se repetem em outras obras de Dostoiévski, assim como a escrita e, em especial, o formato de escrita em que são vertidas as memórias de Niétotchka — um misto de narrativa em primeira pessoa e narrador onisciente. Como o narrador de Os Demônios, Niétotchka mistura acontecimentos que presenciou com relatos que lhe contaram, numa forma de justificar seu conhecimento aprofundado de eventos em que nem teria com tomar parte. Por essas e outras, o livro é considerado um protótipo dos futuros romances maiores de Dostoiévski. O nível de detalhamento nos permite perceber que, ao que tudo indica, Niétotchka Niezvânova também poderia atingir as dimensões de um Crime e Castigo, por exemplo. E, assim sendo, apesar de incompleto, é leitura indispensável para quem quer compreender Dostoiévski enquanto autor.



[1] Оu César, ou nada.

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