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Uma resenha de Humilhados e ofendidos

de Fiódor Dostoiévski


Quem está familiarizado com a biografia de Dostoiévski sabe que sua vida e sua carreira foram ricas em incidentes trágicos. O pai ruim assassinado, a morte da primeira esposa, mais tarde o vício em jogo, as diversas censuras e o constante fantasma da pobreza. Tudo isso sempre lançou sombras na obra do escritor, determinando seus temas e influenciando sua capacidade de esmiuçar as misérias humanas. 

Porém, de todos os abalos, um em especial serviu-lhe de ponto de virada: a condenação por crime político, com todos os fatos que a cercaram — a sentença de morte, a simulação de execução, a comutação da pena no último minuto e os anos de encarceramento e trabalhos forçados na Sibéria. Tudo isso contribuiu para dar à sua obra uma nova dimensão, ainda mais estreitamente ligada ao sofrimento. E essa dimensão já começa a se refletir no primeiro romance lançado por Dostoiévski após sua libertação, Humilhados e ofendidos.

Como o romance é um pouco maior que as outras obras do autor (re)lidas por mim este ano, em tamanho, mesmo, dividi a resenha em alguns tópicos, como com a de Os demônios, para melhor abordar todas as questões dignas de interesse.

O NARRADOR


Assim como ocorre na maioria das obras de Dostoiévski, Humilhados e ofendidos contém pinceladas autobiográficas do autor. Aqui, elas se concentram em dois pontos principais: o narrador-personagem e o triângulo amoroso que ele integra. O referido narrador, Ivan Petróvitch (ou Vânia), é um jovem literato, de vinte e poucos anos, que fez um estrondoso sucesso com seu primeiro romance, mas depois não conseguiu escrever mais nada que repetisse o sucesso dele, para prejuízo de suas finanças. 

Exatamente o mesmo ocorreu com Dostoiévski na primeira fase de sua carreira, anterior à prisão. Seu romance de estreia, Gente pobre, de imediato caiu no gosto popular e no gosto da crítica, recebendo elogios até do linha-dura Bielínski, que chegou a ver em Dostoiévski “o próximo Gógol” — uma façanha espelhada por Vânia de Humilhados e ofendidos. Assim como seu personagem, porém, Dostoiévski também demorou para conseguir entusiasmar o público novamente, sobrevivendo de contos e obras menores que escrevia para os jornais.

Vânia, enquanto escritor, é um retrato bastante fiel de seu autor, inclusive no método de produção, alternando picos de entusiasmo febril e completa falta de vontade de pegar da pena. Segundo ele:

...para mim sempre foi mais agradável elaborar mentalmente as minhas obras e sonhar sobre como se daria a sua escrita do que de fato escrevê-las, e, de verdade, não por preguiça. Por quê, então?

Há outro aspecto em que a vida de Vânia reprisa a de seu autor: o aspecto amoroso. No livro, Ivan se apaixona por Natacha — sua irmã de criação — assim que a reencontra em São Petersburgo, após anos de separação. A moça, aparentemente, retribui, e, como Ivan naquele momento está no pico do sucesso granjeado pelo primeiro livro, os pais não se opõem à união dos dois, desde que, dali a um ano, o rapaz prove que tem condições de sustentar uma família. A felicidade do casal, no entanto, é impedida tanto pelo fracasso de Ivan em emplacar um segundo romance, quanto porque Natacha se apaixona por outro. Sua paixão avassaladora por esse novo elemento sobrepõe-se facilmente à ternura que nutre pelo escritor. Ele, no entanto, permanece um fiel amigo dela e até ajuda muitas vezes o casal.

Esse acontecimento, também retratado em Noites brancas, reflete uma situação real vivenciada por Dostoiévski um tempo antes de seu primeiro casamento. Quando o escritor sua futura esposa, Maria Dmitrievna ela era casada com um homem destruído pela bebida. Não demorou muito e ela enviuvou, e então o escritor, já apaixonado, pediu-a em casamento, mas não recebeu uma resposta positiva de imediato. Ela tinha outros pretendentes, e um deles em especial roubou-lhe o coração, um professor seis anos mais jovem que ela e muito bonito. Por causa dele, de início, ela se recusou a casar com Dostoiévski que, mesmo torturado pelo ciúme, devido à sua concepção de amor como um ato de sacrifício, subjugou as próprias dores e, como Vânia, chegou a tentar ajudar o casal. Diligenciou até para tentar encontrar um emprego melhor para o jovem, que estava numa situação social pior que à do próprio Dostoiévski, um ex-preso político. Mas, no fim, após mudanças de ideia e vacilações, Maria Dmitrievna acabou se decidindo pelo escritor.

Ou seja, na vida de Dostoiévski, tanto a parte amorosa, quanto à carreira se consertaram. 
Já Vânia não teve a mesma sorte.


A HISTÓRIA


No começo do livro o encontramos num leito de hospital, imaginando que não vai durar muito, e por isso resolve fazer um esforço para nos contar os acontecimentos tensos que marcaram seu ano anterior. Esclarece de início ser órfão e ter sido criado no campo por um casal bondoso, Nikolai Serguêievitch Ikhmenev e sua esposa Anna Andrêievna, que têm só uma filhinha, um pouco mais nova que ele. Quando alcança a idade de estudar, eles o mandam para a capital, São Petersburgo, que é onde ele permanece depois de estudar, tentando perseguir a carreira de literato, em vez do serviço público, que esperavam que ele abraçasse. Ele só reencontra a família adotiva anos depois, quando eles também vêm para a capital, a fim de resolver certas pendências do velho Ikhmenev com a justiça.

Ocorre que o velho Ikhmenev era um administrador rural virtuoso, e sua pequena propriedade, Ikhmenevka, destacava-se entre as propriedades vizinhas pelos excelentes frutos e resultados. Sua fama acabou chegando no Príncipe..., que tinha uma propriedade bem maior nas redondezas de Ikhmenevka, e o príncipe fez-se de amigo de Ikhmenev e lisonjeou-o até que ele aceitasse um cargo de administrador nas terras do nobre. Mais tarde, porém, devido a certas intrigas e desentendimentos, o príncipe demitiu Ikhmenev e o acusou de desídia e fraude na venda de um bosque que pertencia às terras administradas, abrindo um processo contra ele.

A principal intriga por trás desse rompimento tinha a ver com questões a princípio não monetárias. O príncipe, que casara e enviuvara cedo, tinha apenas um filho do primeiro casamento, com quem quase não convivia. Quando o filho tinha aí uns dezoito, dezenove anos, começou a aprontar na capital, e o pai, para dar-lhe uma lição e não permitir que se arranhasse demasiado a reputação da família, mandou o rapaz para sua propriedade rural, onde os Ikhmenev o abrigaram. Um moço rico, bonito e nobre necessariamente chamaria a atenção das damas solteiras da redondeza. Elas começaram a reclamar, porém, que a jovem Natacha, filha do administrador, não permitia que o recém-chegado visse mais ninguém além dela, monopolizando sua atenção e tentando seduzi-lo. E o boato é que ela fazia tudo isso com instrução e aprovação dos pais, doidos para ascender socialmente por meio de um casamento vantajoso.

Tais boatos são inicialmente refutados como infundados, especialmente por parte do casal de velhos que têm tanta certeza da inocência da filha quanto da sua própria. A primeira ofensa já vem com essa acusação, que o príncipe atira no rosto do administrador. Depois lhe cabe amargar a humilhação do processo por ladroagem. O golpe mais doloroso, porém, vem no meio da batalha judicial, e do lado que ele menos espera: Natacha e Aliócha, o filho do príncipe, realmente tinham se apaixonado quando o rapaz se hospedou no campo, e o romance tomara tal vulto que a moça acabou decidindo fugir dos pais para ir morar com seu amado.

Além da desonra natural que qualquer moça solteira trazia para sua família fugindo com um amante, mesmo quando a fuga acabava em casamento — o que não foi o caso —, o ato de Natacha fez parecer verdadeiras as acusações de alcoviteiros ambiciosos lançadas contra seus pais. Por conseguinte, abalaram-se também as alegações de inocência que eles opunham às demais acusações sofridas.

Para Ikhmenev, que tinha enorme zelo por sua reputação ilibada, o golpe é insuportável. Ele passa o resto do livro meio fora do ar, alternando entre surtos de saudade e constrangimento pela saudade que redundam em escândalos em que ele chega a amaldiçoar Natacha por seu mal comportamento. Inicia-se uma batalha entre o orgulho dele, que se recusa a perdoar e procurar a filha, e o de Natacha, que tampouco resolve voltar, a despeito de tudo o que sofre na mão do amante.

Não, Aliócha não é violento com ela, nem a maltrata propositalmente. Mas é de uma infidelidade revoltante, leviano que só ele, não move um dedo para instalá-la em um lugar confortável e adia eternamente o plano de casar-se com Natacha. Volta e meia ele fala no assunto e acredita mesmo que eles vão se casar um dia. Mas ele está muito ocupado curtindo seu ócio de nobre jovem e mimado para se preocupar em concretizar qualquer coisa no momento. Logo que eles fogem, ele está todo imbuído de ideias nobres — plantadas por Natacha — sobre conquistar o próprio sustento com seu trabalho. A disposição não dura, no entanto. Quando o pai corta sua mesada, irritado com a união do filho com alguém de classe inferior, Aliócha passa a vender os próprios pertences caros para sobreviver, em vez de procurar serviço. No fundo, abriga a esperança de que seu pai vai consentir no casamento deles e assim não o obrigará a grandes esforços e a peitar ninguém, porque Aliócha é muito avesso a conflitos.

Seis meses depois de Natacha fugir de casa, seu irmão de criação estava procurando casa. Certa tarde, quase de noite, avista um velhote esquisito que, acompanhado de um cachorro magro, dirige-se todos os dias a uma confeitaria alemã naquela região e fica sentado por algumas horas, junto à lareira, olhando para o nada. Vânia, que já testemunhara a cena outras vezes, dessa vez decide seguir o velho. Na cafeteria, após ser interpelado por um cliente incomodado com seu olhar fixo, o velho, constrangido, resolve ir embora, chama o cachorro, o cão não responde: morreu. Perturbado, o velho ignora as manifestações de solidariedade dos alemães frequentadores da confeitaria, e sai desabalado pela rua. Ivan o segue, para dizer que ele esqueceu o cadáver do cão na loja, e acaba testemunhando a morte do velho, que lhe dá um vago endereço ao falecer.

Ilustração de Nikolai Karazin para Humilhados e ofendidos, 1893.

Essa circunstância faz com que o moço tenha que despachar alguns negócios ligados à morte do idoso, e em meio a tais diligências, ele descobre onde o homem morava, um apartamento no sótão de uma casa de quartos para alugar cujo aluguel cabe em seu bolso. Ele, então, se muda para o apartamento do falecido, e é assim que acaba travando conhecimento com sua neta, Nélli.

Nélli é uma menina de uns doze anos, órfã como o narrador, e aos poucos descobrimos a história de sua mãe, cuja vida reflete um prognóstico sombrio do futuro de Natacha. Também ela fora uma filha única e muito amada pelo pai que fugira para se casar com um namorado, logrando ainda financeiramente seu pai em favor do amante e causando-lhe a falência. Após leva-la para o estrangeiro, onde ela engravidou de Nélli, o namorado acabou por abandonar a moça que, quando morreu seu protetor — outro enamorado que ela preterira, mas que permaneceu leal — caiu na miséria e tentou voltar para a Rússia, para procurar o pai e obter seu perdão. O pai, porém, miserável e meio doido, reteve e reteve o perdão, e quando enfim se decidiu a perdoá-la, já era muito tarde: a mulher, doente e ainda mais miserável que o velho, falecera no cantinho de porão onde morava.

O homem, que já não se encontrava no seu melhor estado, vai saindo de sintonia. Não leva a neta para morar consigo, deixando-a ao arbítrio da senhoria de sua mãe, uma cafetina que tem os planos mais escusos para a garota. E quando Nélli vai visita-lo, ele ainda a faz sair pedindo dinheiro para sustenta-lo.

É numa dessas visitas que ela vai parar no apartamento de Vânia com ela ainda lá. A menina é esquiva e, da primeira vez que ela vem, o rapaz perde sua pista na escada. Mas ela volta para buscar uns livros, e o narrador, em quem os modos estranhos dela tinham despertado a curiosidade, a interroga um pouco mais e resolve segui-la. É quando descobre onde ela mora e, indagando aqui e ali, acaba captando nas entrelinhas o risco a que a menina está exposta.

Com a ajuda de um amigo de infância que ele encontra por acaso saindo de um bar, o qual conhece a casa de má fama em que Nélli está retida, Vânia invade o local e leva a menina para morar consigo, onde ela permanece até o fim do romance. Além da personalidade esquiva, fruto de intenso sofrimento e inomináveis traumas, ela está doente, tendo um problema de saúde congênito que suas condições de vida só fizeram agravar. Vânia contrata um médico para cuidar dela, compra remédios, roupas básicas — sob muitos protestos de Nélli, que insiste em trabalhar para pagar sua estadia com ele — e cuida dela o melhor que consegue. Outros acontecimentos cruciais simultâneos, porém, exigem boa parte da atenção que ele gostaria de legar à hóspede.

As relações de Natacha e Aliócha, já desgastadas pelos seis meses de convivência com muitas escapadas de Aliócha perdoadas pela namorada, sofrem um golpe forte quando o pai do moço, que estivera cuidando de negócios no estrangeiro, retorna para a capital e faz uma visita surpresa à escolhida de seu filho. 

É de se ressaltar que Aliócha não mora com ela, tendo-a hospedado num apartamento meia-boca com uma senhorinha para servi-la, mas passando mais tempo na casa do pai ou em passeios com os amigos. Natacha frequentemente se angustia quando ele passa vários dias sem aparecer. Ele não a largou, todavia, como o príncipe esperava, pois alimentava planos de casar o filho com uma herdeira riquíssima, enteada de sua amante. Numa ocasião que armam para apresentar Aliócha à Kátia, a escolhida do pai dele, o rapaz, com toda a ingenuidade que lhe é própria e também um pouco de astúcia, depois de estudar o caráter da garota e intuir corretamente seus impulsos nobres, resolve contar-lhe toda a verdade sobre sua situação com Natacha. Espera que, fiel a seus princípios, a própria Kátia se recuse a se casar com ele. É o que ela faz.

Quando o príncipe vê essa ousadia inesperada do filho, percebe que é hora de mudar de estratégia. Se o rapaz se preparou para lutar, o melhor é mostrar-lhe que não há contra quem. E assim o príncipe vai visitar Natacha, finge tê-la em alta conta, tecendo até umas observações de relutância no meio do discurso para conferir-lhe veracidade, e dá sua permissão oficial para o casamento dos dois.

Ele calcula corretamente que Aliócha não se apressará nem um pouco em concretizar algo tão complicado quanto o casamento, e que sua gratidão o deixará mais vulnerável à influência do pai e sequioso por agradá-lo. E o moço também precisará passar um tempo maior com Kátia, por gratidão e reconhecimento, e...

Natacha não engole as boas intenções do príncipe. Vânia tampouco. Sempre junto da amiga, por quem é apaixonado, ele conhece a natureza ciumenta que os dias passados na solidão só alimentam, e a vê passar por angústias horríveis enquanto a situação evolui para sua solução inevitável: Aliócha se apaixona por Kátia, é correspondido, não cumpre nenhuma de suas promessas e a abandona paulatinamente, enquanto se acalma com desculpas que a própria Natacha fornece, por não gostar de vê-lo abalado.

Algum tempo depois de Aliócha ir embora para uma temporada no campo com Kátia e a madrasta dela, Natacha decide voltar para casa. Ao mesmo tempo, sem saber que a moça se decidira a este passo e vendo a angústia do velho Ikhmenev, relutante entre perdoar a filha e manter o orgulho, Vânia pede que Nélli conte a história de sua mãe ao casal de idosos. Ele leva a menina para lá. A intenção é alcançada, e a narrativa sombria toca o coração de Nikolai Serguêievitch. Ele decide esquecer suas mágoas — agravadas pela injusta derrota judicial — e ir procurar a filha. É quando a própria aparece na porta, e tem-se uma das cenas mais bonitas do romance, com uma das falas mais tocantes, de paralelo inocultável com a parábola bíblica do Filho Pródigo (Evangelho de Lucas, 15:11-32):

— Ela está aqui de novo, junto ao meu coração! — ele gritou. — Agradeço-te, oh Deus, por tudo, por tudo, tanto pela Tua ira, quanto pela Tua misericórdia! E pelo teu sol que raiou agora, depois da tempestade, sobre nós! Agradeço por todo este momento! Oh! E daí que fomos humilhados, que daí que fomos ofendidos, estamos juntos de novo, e que triunfem os orgulhosos e soberbos que nos humilharam e ofenderam! Que nos atirem pedras! Não tema, Natacha... Nós andaremos de mãos dadas, e eu lhes direi: esta é minha querida, minha amada filha, minha filha inocente que vocês ofenderam e humilharam, mas que eu, eu amo e a quem abençoo pelos séculos dos séculos!...

Apesar das críticas de ser artificial e folhetinesco — com as quais o próprio Dostoiévski mais tarde concordou e que cenas como essa acima podem ter motivado — o livro já retrata dilemas morais, misérias e fatalidades, e cava fundo a alma humana. É verdade que há certo exagero maniqueísta que permite dividir o livro em mocinhos e vilões, o que fica mais difícil em obras mais tardias do autor. Mas nem por isso os personagens são menos vivos e marcantes e não se gravam indelevelmente na memória do leitor.

OS PERSONAGENS


Não foi só o narrador que Dostoiévski baseou em gente real. O modelo para Natacha, conforme já mencionado, foi sua primeira esposa, Maria Dmitrievna. Pelo que se sabe sobre ela, tanto por testemunhos de gente que conheceu o casal, quanto pelas cartas que Dostoiévski trocava com seus entes queridos, Maria Dmitrievna era uma mulher impulsiva, impressionável, inteligente e instruída, e, segundo seu marido, bondosa. É notório também que ela sabia se portar com dignidade no infortúnio e se entregava de corpo e alma à paixão, de um modo febril, doentio até, que Natacha descreve ao sopesar seu amor por Aliócha, em uma das cenas finais do livro:

Agora estou despedaçada... [...] no que eu estava pensando, o que me perguntava? Perguntava-me: amei-o ou não amei, e que amor era esse, o nosso? [...] Parece-me até que não existe no mundo um amor em que ambos amem um ao outro igualmente, não acha? [...] Ele era meu. [...] Quase desde o meu primeiro encontro com ele, surgiu em mim o desejo irrefreável de que ele fosse meu, meu o mais rápido possível, e que não olhasse para mais ninguém não conhecesse ninguém mais além de mim... [...] Bem, mas era exatamente isso que eu amava nele, mais que qualquer outra coisa... acredita? Aliás, não sei se amava só isso: simplesmente eu o amava inteiro, e se qualquer coisa nele fosse diferente, se ele tivesse caráter ou fosse mais inteligente, talvez eu não o amasse tanto. [...] Eu amava terrivelmente perdoá-lo, Vânia [...]; sabe que quando ele me deixava sozinha, eu ficava andando pela sala, afligindo-me, chorando, e às vezes eu mesma pensava: quanto mais culpado ele for perante mim, melhor... sim!

Apesar de todos os elogios apaixonados que o narrador tece a Natacha, o leitor pode entrever seus defeitos, tanto em falas como essa, como no comportamento da moça em geral. Volubilidade, cálculo — contra tais críticas é justo argumentar que o amor não gera direito automático à sua retribuição. Mas não se pode negar que Natacha era bastante controladora, e talvez a tenha atraído em Aliócha o fato de que ele era relativamente fácil de controlar. Cada uma das suas ações nessa relação é cuidadosamente medida para que o moço permaneça na disposição de espírito em que ela o quer: sempre em dívida para com ela. Ela desvenda os planos do príncipe em parte porque está isolada com suas dúvidas e ciúmes e não tem mais nada para fazer, e em parte porque sabe como é fácil manipular o moço, já que ela mesma joga esse jogo.

A nobreza e a bondade de Natacha escondem sentimentos sombrios exibidos por quase todos os personagens do livro em níveis e manifestações diversas. Humilhados e ofendidos, olhado pelo lado avesso da moeda, poderia se chamar tranquilamente Orgulhosos e egoístas. 

E, assim como na moeda, os dois lados estão indissoluvelmente ligados. Vários dos personagens — Natacha, seu pai, Nélli, a finada mãe e o avô — têm seu orgulho derivado das humilhações que passam, e se fecham cada vez mais nele, em um processo de compensação para manter a dignidade. E isso o torna mais suscetíveis à humilhação, em um ciclo infindo.

Nesse contexto, não adianta os personagens esperarem pelo dia em que os humilhados serão exaltados; é preciso que cada um aprenda a processar as ofensas sofridas, definir suas prioridades, e tocar a vida a despeito das injustiças e mesmo que as coisas não se arranjem do modo desejado.

Pessoas boas nem esperam que lhes façam o bem primeiro, Nélli. Independente disso, eles amam ajudar quem precisa. Chega, Nélli; há muita gente boa no mundo. É só uma desgraça você não costumar encontrá-las e nunca as ter encontrado quando precisava.

Essa é uma façanha em tanto e nem todo mundo consegue — ou quer — executá-la. No livro, vemos os dois finais possíveis de uma mesma história: Natacha e seu pai se reconciliam no final. Os golpes sofridos — e principalmente os vibrados — deixarão sequelas, mas o bálsamo do amor e do perdão se derrama sobre elas para amainar a dor e, talvez, com o tempo, fechar as feridas. 

Mas os Ikhmenev só tenham conseguido dar esse passo porque tinham na sua frente o exemplo do que aconteceria se tomassem o caminho contrário, insistindo na mágoa. Afinal, tinham na sua frente uma criança doente e miserável, largada no mundo após a morte dos seres que poderiam lhe dar algum amparo, ambos endoidecidos pela ofensa continuamente repisada, e que só se decidiram a perdoar o respectivo ofensor quando era tarde demais. 

Piores que os horrores materiais sofridos por Nélli, como fome, frio e exploração, foram os danos causados ao seu psicológico por ter crescido no meio dessa dinâmica, bebendo orgulho no leite materno. A menina se tornou incapaz de reconhecer bondade e aceitar ajuda, vivendo o tempo todo no sobressalto da desconfiança e apegando-se aos poucos que amava com uma carência, um amor desesperado e exclusivista que lhe fazia mais mal do que bem. 


Nélli (Нелли). Ilustração de Iliá Glazunov.

A menina — assim como sua finada mãe e Natacha — estava contaminada pelo que podemos chamar de “egoísmo do sofredor”, uma espécie de masoquismo que o faz cutucar permanentemente a própria ferida e o cega para os sofrimentos dos outros, que também existem. Dostoiévski aborda o assunto nas palavras de muitos personagens. O próprio narrador comenta sobre Natacha, quando a vê revolvendo seu passado, depois que Aliócha a abandona em definitivo: 

Pareceu-me que ela mesma cutucava sua ferida de propósito, sentindo uma espécie de necessidade de fazer isso — uma necessidade de desespero, de sofrimento... E com quanta frequência isso acontece a um coração que perdeu muito!

Já o Príncipe Valkóvski, numa conversa descarada que mantém com o narrador, diz-lhe, sobre a amante que ele enganou, roubou e abandonou:

...nesse tipo de infelicidade, a pessoa experimenta até uma espécie de êxtase elevado, por se sentir completamente certa e magnânima e ter pleno direito de chamar seu ofensor de patife.

E, quando percebe que Nélli não gosta dele, Nikolai Ikhmenev se queixa:

Dizem que o farto não entende o faminto; mas eu, Vânia, acrescento que nem o faminto entende sempre o outro faminto.

Esse tipo de egoísmo, porém, é apenas o mais sutil e paradoxal de toda a paleta retratada no livro. Há o egoísmo privilegiado e inocente, quase constrangido de Kátia, não resistindo a buscar motivos para tornar aceitável o sacrifício de Natacha; o egoísmo utilitário de Masloboev, que só se interessa pelos assuntos dos outros que lhe possam trazer algum lucro, direta ou indiretamente; o egoísmo da autopreservação nos vizinhos de Nélli, que sabiam do que ela sofria na mão da senhoria-cafetã, mas nada faziam, por medo de se prejudicarem se interferissem; o egoísmo exclusivista de Natacha, que não hesitou em sacrificar os pais em troca de sua possível felicidade pessoal; o egoísmo puro, fruto e causador da completa irresponsabilidade e ausência de caráter do protoplayboy Aliócha. 

Diferente do orgulho, porém, distribuído em medidas mais ou menos semelhantes entre os diversos personagens, o egoísmo encontra um representante oficial no livro: o Príncipe Valkóvski, o grande vilão, causador direto ou indireto da ruína das duas famílias humilhadas e ofendidas na história.

A acusação de irrealidade que o livro sofreu deve-se em parte à personalidade dele. Diziam os críticos que, de tão patife, o príncipe era impossível. Mas é possível que isso seja proposital. A essência do príncipe é inumana, demoníaca, do que ele mesmo nos dá uma pista quando diz que:

Concordo com qualquer coisa, desde que seja bom para mim, e nós, gente assim, somos uma legião, e nos damos muito bem. Tudo no mundo pode perecer, mas nós permaneceremos. Existimos desde que o mundo é mundo.

Além da insinuação de perenidade, a escolha terminológica peculiar desse trecho remete à passagem bíblica em que Jesus pergunta o nome do demônio que afligia o endemoniado gadareno, e ele responde “legião, porque somos muitos” (Evangelho de Marcos, 5:9). 

Assim, o príncipe é a personificação de um espírito, do próprio mal que, na opinião de Dostoiévski, aflige a sociedade sua contemporânea, que começava a abraçar intensamente o individualismo capitalista-burguês. Sua filosofia de vida pode ser resumida em “tudo é para mim, e o mundo inteiro foi feito para mim”. Tal ética hedonista não veda nada que traga vantagem, e na verdade justifica mentiras, adulação, manipulação, hipocrisia e todo tipo de patifaria por seus frutos lucrativos. Até mesmo o idealismo, nele, se deturpa em desculpa para a exploração, como no caso das servas de quem abusou sexualmente enquanto estava em sua propriedade campestre, imbuído em melhorar a vida de seus mujiques. “Considero-me obrigado apenas quando a coisa me traz alguma vantagem”, o personagem anuncia, em sua descarada conversa com Ivan no restaurante. E está convencido de que todos são como ele, todos agem assim:

Se apenas fosse possível (o que, aliás, pela natureza humana, jamais será possível), se fosse possível a cada um de nós descrever todos os seus segredos mais íntimos, mas sem temer contar não só o que receia dizer e por nada nesse mundo diria às pessoas, não só o que receia dizer a seus melhores amigos, mas até o que receia às vezes confessar a si mesmo — então, tal catinga se levantaria sobre a terra que todos nós necessariamente sufocaríamos. [...] eu sei com certeza que, no fundamento de todas as beneficências humanas, jaz o mais profundo egoísmo. E quanto mais benfeitora a ação, mais egoísmo há ali. Ame a si mesmo — eis a única regra que eu reconheço. A vida é um trato comercial; não gaste dinheiro à toa, mas não deixe de pagar pela satisfação, e assim você cumprirá todas as suas obrigações em relação ao próximo — eis a minha moral, se você precisa mesmo de uma, apesar de que eu confesso que, na minha opinião, o melhor é nem pagar ao seu próximo, saber obrigá-lo a fazer a coisa de graça.

É o famoso caso do “sou um homem de bem, pago minhas contas”. Curioso que a filosofia do capeta encarnado se assemelhe tanto à do dito cidadão “de bem”, que acha que a retribuição monetária substitui a virtude — e, no fundo, concorda que melhor seria não precisar retribuir. Os inúmeros casos de cidadãos “de bem” expostos em seu lado oculto criminoso nos últimos tempos confirmam essa semelhança identitária. Também a confirmam a tendência de acusar os outros dos defeitos que eles próprios carregam, como quando o príncipe diz a Ivan “há pouco amor no senhor, meu poeta”.

O príncipe Valkóvski é um protótipo de personagens que aparecem em romances mais maduros de Dostoiévski — Svidrigáilov, de Crime e Castigo, por exemplo, ou Stavróguin, de Os demônios — já melhor trabalhados, com espaço até para crises de consciência, que inexistem em Valkóvski.

Outros personagens e outras situações da história, como de costume, encontram eco nos demais livros do autor, motivo pelo qual Humilhados e ofendidos é considerado uma peça chave para a compreensão da obra de Dostoiévski como um todo.

Considerado um livro de transição, a primeira tentativa dostoievskiana de um romance ideológico, Humilhados e ofendidos pode ser recomendado para quem quer começar a ler as obras maiores do autor, mas ainda não tem fôlego para a pancadaria do “grande pentateuco” (Crime e castigo, Os irmãos Karamazov, O adolescente, O idiota e Os demônios). Ou para quem está simplesmente a fim de passar por uma tempestade de emoções, que abundam no texto em todos os matizes.



***

Todas as ilustrações desta resenha pertencem a V. P. Panov (1971), com exceção das duas cuja autoria está indicada na legenda, e a do pai abraçando a filha, que pertence a Pavel Fiódorov. As citações foram traduzidas diretamente da edição russa lida por mim este ano, que também baseou as resenhas de Memórias do subsolo, O duplo, Noites brancas e Niétotchka Niezvânova: Maloe sobranie sotchineni (Pequena coletânea de obras), editora Ázbuka, 2016, São Petersburgo, ISBN 978-5-389-02127-3.

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