BLOG PARA DIVULGAÇÃO DA LITERATURA RUSSA AOS FALANTES DE LÍNGUA PORTUGUESA.

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Hamlet e Dom Quixote

Ivan Turguêniev [1]




Senhoras e senhores! 

A primeira edição da tragédia de Shakespeare, Hamlet, e a primeira parte do Dom Quixote de Cervantes surgiram no mesmo ano, bem no começo do Século XVII.

Essa casualidade nos pareceu notável; a proximidade das duas obras por nós mencionadas nos conduziu a toda uma cadeia de pensamentos. Pedimos permissão para compartilhar esses pensamentos com os senhores e contamos de antemão com sua indulgência. “Quem quer entender um poeta deve ir ao país do poeta[2]”, disse Goethe; o prosaísta é privado de quaisquer direitos a uma exigência semelhante; mas ele pode esperar que seus leitores — ou ouvintes — queiram acompanhá-lo em suas peregrinações, em suas buscas.

Alguns dos pareceres talvez os choquem, senhoras e senhores, por sua peculiaridade; mas é nisso mesmo que consiste a vantagem especial das grandes obras poéticas, em quem os gênios dos seus criadores incutiram uma vida imperecível: que os pareceres sobre elas, assim como sobre a vida em geral, podem ser infinitamente variados, até contraditórios — e ao mesmo tempo, igualmente justos. Quantos comentários já foram escritos sobre Hamlet e quantos ainda se prevê para o futuro! A que diversificadas conclusões já conduziu o estudo deste tipo verdadeiramente inexaurível! — Dom Quixote, pela própria natureza da sua missão, pela clareza verdadeiramente magnífica da narrativa, como que iluminada pelo sol do Sul, dá menos pretexto a interpretações. Mas, infelizmente, nós russos não temos uma boa tradução de Dom Quixote; a maior parte de nós conservou sobre ele lembranças bastante vagas; na expressão "Dom Quixote" com frequência subentendemos apenas um bufão; a palavra “quixotismo”, para nós, é equivalente à palavra “disparate”, quando no quixotismo deveríamos reconhecer o elevado princípio da abnegação, apenas abordado a partir de sua faceta cômica. Uma boa tradução de Dom Quixote seria um verdadeiro serviço ao público, e a gratidão geral aguarda o escritor que nos transmitir essa obra única em toda a sua beleza. Mas voltemos ao assunto da nossa palestra.

Dissemos que o surgimento simultâneo de Dom Quixote e de Hamlet nos pareceu significativo. Pareceu-nos que nesses dois tipos estão encarnadas duas características fundamentais e opostas da natureza humana — as duas pontas do eixo em torno do qual ela gira. Pareceu-nos que todas as pessoas pertencem mais ou menos a um desses dois tipos; que quase cada um de nós se extravia ou num Dom Quixote, ou num Hamlet. É verdade que na nossa época o número de Hamlets ficou muito maior que o de Dons Quixotes; mas os Dons Quixotes também não foram eliminados. 

Expliquemo-nos.

Todas as pessoas vivem — consciente ou inconscientemente — da força do seu princípio, seu ideal, isto é, por força daquilo que consideram verdade, beleza, o bem. Muitos recebem seu ideal já completamente pronto, em formas definidas, historicamente arranjadas; eles vivem, pesando sua vida à luz desse ideal, às vezes desviando-se dele sob a influência das paixões ou do acaso, mas não o analisam racionalmente, não duvidam dele; outros, pelo contrário, o submetem ao exame da sua própria razão. Em todo caso, não erraremos muito, parece, se dissermos que, para todas as pessoas, esse ideal, essa base e objetivo de sua existência se encontra ou fora ou dentro de si mesmos: em outras palavras, para cada um de nós, ou é o “eu” que se encontra em primeiro lugar, ou alguma outra coisa, reconhecida pelo eu como superior. Podem nos objetar que a realidade não permite delimitações tão nítidas, que no mesmo ser vivo ambas as concepções podem se alternar, até mesmo se mesclar até certo grau; mas nem sequer pensamos em afirmar o impossível! Há muitas modificações e contradições na natureza humana; nós quisemos apenas apontar as duas atitudes distintas que uma pessoa pode assumir em relação ao seu ideal — e agora tentaremos demonstrar de que modo, segundo entendemos, essas duas atitudes distintas encarnaram-se nos dois tipos que escolhemos. 

Comecemos com Dom Quixote. 

O que Dom Quixote expressa por meio da sua pessoa? Consideremo-lo não com aquele olhar apressado, que se detém nas superficialidades e ninharias. Não veremos em Dom Quixote apenas o cavaleiro da triste figura, um figurão criado para ridicularizar os velhos romances de cavalaria; sabe-se que a importância desse personagem se ampliou sob a própria mão de seu imortal criador e que o Dom Quixote da segunda parte, gentil interlocutor de duques e duquesas, sábio instrutor do escudeiro-governador, já não é o mesmo que nos apareceu na primeira parte do romance, especialmente no começo, não é mais aquele esquisitão estranho e engraçado, sobre o qual tão generosamente despejam-se golpes; e, por isso, faremos uma tentativa de penetrar até a essência da questão. Repetimos: o que Dom Quixote expressa por meio da sua pessoa? Antes de tudo, fé; fé em algo eterno, inabalável, na verdade, numa palavra, numa verdade que se encontra fora do indivíduo, mas que lhe é facilmente concedida, que demanda serviço e sacrifícios, mas é acessível à constância do serviço e à força do sacrifício. Dom Quixote está todo imbuído de dedicação ao ideal, pelo qual ele está disposto a se submeter a todas as privações possíveis, sacrificar a vida; sua própria vida ele só valoriza na medida em que ela pode servir de meio para a concretização do ideal, para o estabelecimento da verdade e da justiça sobre a terra. Dir-nos-ão que esse ideal foi extraído do mundo fantástico dos romances de cavalaria pela imaginação abalada dele; de acordo — é nisso, afinal, que consiste a faceta cômica de Dom Quixote; mas o ideal em si permanece, em toda a sua pureza intocada. Viver para si, preocupar-se consigo mesmo — Dom Quixote consideraria isso vergonhoso. Ele vive inteiro (se é possível se expressar dessa maneira) fora de si, para os outros, para seus irmãos, para o extermínio do mal, para resistir às forças hostis à humanidade — aos bruxos, aos gigantes, isto é, aos opressores. Nele não há nem vestígio de egoísmo, ele não se preocupa consigo mesmo, ele é todo abnegação — apreciem esta palavra! — ele crê, crê fortemente e sem olhar para trás. Por isso ele é destemido, paciente, satisfaz-se com a comida mais módica, com a mais pobre vestimenta: ele não tem tempo para isso. Humilde de coração, ele é grande e ousado em espírito; sua devoção comovente não limita sua liberdade; alheio à vanglória, ele não duvida de si, do seu chamado, nem mesmo de suas forças físicas; a vontade ele é uma vontade inexorável. O esforço contínuo em direção ao mesmo objetivo confere alguma monotonia a seus pensamentos, estreiteza à sua mente; ele sabe pouco, e na verdade nem precisa saber muito: ele sabe qual é o seu negócio, para que vive na terra, e esse é o conhecimento principal. Dom Quixote pode se mostrar ora um completo louco, porque a própria realidade material indubitável desaparece perante os olhos dele, derrete como cera ante o fogo do seu entusiasmo (ele de fato vê mouros vivos em bonecos de madeira, cavaleiros em carneiros), ora limitado, pois não sabe nem se compadecer de leve, nem se regozijar de leve; mas, como uma árvore longeva, ele aprofundou as raízes no solo e não está em condições de mudar sua convicção, nem de passar de um tema a outro; a solidez de sua composição moral (reparem que esse cavaleiro andante louco é o ser mais moral do mundo) confere uma força especial e majestade a todos os seus juízos e discursos, a toda a figura dele, a despeito das situações cômicas e humilhantes nas quais ele continuamente cai... Dom Quixote é um entusiasta, servo de uma ideia e por isso cercado pelo brilho dela. 

Hamlet. Ilustração de Rockwell Kent, 1936.
E o que Hamlet representa? 

Análise, acima de tudo, e egoísmo, e por isso descrença. Ele vive todo para si, é egoísta; mas crer em si mesmo nem um egoísta consegue; só se pode crer naquilo que está fora e acima de nós. Mas este “eu”, em que ele não crê, é caro a Hamlet. É o ponto de partida para o qual ele retorna continuamente, porque não encontra nada no mundo inteiro a que possa se apegar com sua alma; ele é cético, dedica-se a si mesmo e se paparica o tempo todo; está continuamente ocupado não com sua obrigação, mas com a sua posição. Duvidando de tudo, Hamlet, é claro, não poupa nem a si mesmo; seu intelecto é desenvolvido demais para se contentar com o que ele encontra em si: ele reconhece sua fraqueza, mas todo autoconhecimento é força; disso resulta sua ironia, sua contraposição ao entusiasmo de Dom Quixote. Hamlet repreende a si mesmo exageradamente, com satisfação, observa-se continuamente, olhando todo o tempo para dentro de si, ele conhece com exatidão todos os seus defeitos, despreza-os, despreza a si — e, ao mesmo tempo, pode-se dizer, vive, alimenta-se desse desprezo. Ele não acredita em si — e é vaidoso; não sabe o que quer e para que vive — e é apegado à vida... “Oh Deus, Deus! (exclama, na 2ª cena do primeiro ato), se Tu, juiz da terra e do céu, não proibisses o pecado do suicídio!... Quão vulgar, vazia, banal e fútil me parece a vida!” Mas ele não sacrifica essa vida banal e vazia; ele sonha com o suicídio ainda antes da aparição da sombra do pai, antes do terrível encargo que termina de despedaçar sua vontade já trincada — mas não se matará. O amor à vida se revela nesses próprios sonhos com a interrupção dela; todos os jovens de dezoito anos são familiarizados com sentimentos similares:
Ora o sangue ferve, ora as forças sobram.[3]
Mas não sejamos severos demais com Hamlet; ele sofre, e seus sofrimentos são mais dolorosos e cáusticos que os sofrimentos de Dom Quixote. A este espancam pastores rudes, criminosos que ele libertou; Hamlet inflige as feridas a si mesmo, ele próprio se dilacera; nas mãos dele também há uma espada: a espada de dois gumes da análise. 

Dom Quixote, devemos reconhecer, é positivamente engraçado. Sua figura talvez seja a figura mais cômica jamais desenhada por um poeta. O nome dele se tornou um apelido engraçado até na boca dos mujiques russos. Pudemos nos certificar disso com nossos próprios ouvidos. Ante a mera lembrança dele, surge na imaginação uma figura descarnada, angulosa, de nariz aquilino, revestida com uma armadura caricaturesca, erguido sobre a ossamenta mirrada de um cavalo digno de pena, daquele pobre, eternamente faminto e alquebrado Rocinante, a quem não se pode negar uma participação meio divertida, meio amalucada. Dom Quixote é engraçado... Mas no riso há uma força reconciliadora e redentora, e se não é à toa que dizem “Do que tu rires, a isso servirás”, pode-se adicionar que aquele de quem se riu já se perdoou, já se está pronto a amar. A aparência de Hamlet, pelo contrário, é atraente. Sua melancolia, seu aspecto pálido, embora não magro (a mãe dele observa que ele é gordo, “our son is fat”), a roupa preta de veludo, a pena no chapéu, as maneiras elegantes, a indubitável poesia do seu modo de falar, o sentimento constante de plena superioridade sobre os outros, junto ao passatempo cáustico da auto-humilhação, tudo nele agrada, tudo cativa; ganhar fama de Hamlet é lisonjeiro para qualquer um — ninguém gostaria de merecer a alcunha de Dom Quixote; “Hamlet-Baratynski” — Púchkin escreveu para seu amigo[4]; de Hamlet ninguém nem pensa em rir, e é exatamente nisso que está sua condenação: amá-lo é quase impossível, somente pessoas como Horácio se afeiçoam a Hamlet. Falaremos sobre elas mais tarde. Qualquer um se compadece dele, e isso é compreensível: quase todos encontram nele alguns traços seus; mas amá-lo, repetimos, é inviável, porque ele mesmo não ama ninguém.

Vamos continuar nossa comparação. Hamlet é filho de um rei assassinado pelo irmão, usurpador do trono; o pai dele sai do túmulo, das "mandíbulas do inferno", para encarregar o filho de vingá-lo, e ele hesita, usa de astúcia consigo mesmo, consola-se xingando-se, e, por fim, mata seu padrasto por acidente. Um profundo traço psicológico, pelo qual muitas pessoas até inteligentes, porém míopes, ousaram condenar Shakespeare! Já Dom Quixote, uma pessoa pobre, quase miserável, sem quaisquer recursos ou contatos, velho, solitário, assume o encargo de corrigir o mal e defender os oprimidos (completos estranhos para ele) por toda a face da Terra. E daí que a primeiríssima tentativa de libertação de um inocente das mãos do opressor desmorona como desgraça dupla na cabeça deste mesmo inocente...? (Referimo-nos à cena em que Dom Quixote livra um menino da surra do seu patrão, que, assim que o libertador se afasta, castiga o pobrezinho com dez vezes mais força). E daí que, pensando enfrentar perniciosos gigantes, Dom Quixote ataca úteis moinhos de vento... O invólucro cômico dessas imagens não deve desviar nossos olhos do sentido oculto nelas. Quem, ao se sacrificar, pondera primeiro, calculando e pesando todas as consequências, toda a probabilidade de utilidade do seu ato, dificilmente é capaz de se sacrificar. Com Hamlet nem pode acontecer nada parecido: até parece que ele, com sua mente sagaz, afiada, cética, cairia em um erro tão grosseiro! Não, ele não lutará com moinhos de vento, não acredita em gigantes... Mas não os atacaria mesmo que eles existissem com certeza. Hamlet não afirmaria, como Dom Quixote, mostrando a todos e cada um uma bacia de barbeiro, que ela era o verdadeiro elmo de Mambrino; mas cremos que nem se a própria verdade se apresentasse encarnada perante os olhos de Hamlet ele se atreveria a garantir que era ela mesma, a verdade... Afinal, quem sabe, talvez a verdade também não exista, assim como os gigantes? Nós rimos de Dom Quixote... mas, senhoras e senhores, quem de nós pode, indagando conscienciosamente a si mesmo, suas convicções passadas e presentes, quem se atreverá a afirmar que sempre e em todos os casos distinguiu e distinguirá uma bacia de estanho de barbeiro de um elmo mágico de ouro? Portanto, parece-nos que a questão principal está na sinceridade e na força da própria convicção... já o resultado, está na mão dos fados. Somente eles podem nos mostrar se lutamos com fantasmas, com inimigos reais, e com qual equipamento cobrimos nossas cabeças... Nossa função é nos armarmos e lutar. 

São formidáveis as atitudes da multidão, da assim chamada massa humana, para com Hamlet e Dom Quixote. 

Polônio é o representante das massas perante Hamlet; Sancho Pança, perante Dom Quixote. 

Polônio é eficiente, prático, sensato, apesar de, ao mesmo tempo, ser um velhote limitado e tagarela. Ele é um ótimo administrador, um pai exemplar; lembrem-se dos conselhos dele para o seu filho Laerte quando este vai para o exterior, conselhos que podem rivalizar em sabedoria com as famosas disposições do governador Sancho Pança na ilha Barataria. Para Polônio, Hamlet é menos um louco que uma criança, e se ele não fosse o filho do rei, Polônio o desprezaria por sua inutilidade inata, pela impossibilidade de dar a seus pensamentos um emprego positivo e eficiente. A famosa cena da nuvem, entre Hamlet e Polônio, a cena em que Hamlet imagina que está fazendo o velhote de bobo, tem para nós um sentido evidente que confirma nosso modo de ver... Permitir-nos-emos recordá-la para vocês:
Polônio. A Rainha deseja falar com Vossa Alteza, agora mesmo.
Hamlet. Vê aquela nuvem? É uma andorinha exata.
Polônio. Uma perfeita andorinha.
Hamlet. Parece-me que ela se parece com um camelo.
Polônio. O dorso é idêntico ao de um camelo.
Hamlet. Ou de uma baleia?
Polônio. Uma perfeita baleia.
Hamlet. Certo. Já vou encontrar minha mãezinha.
Não é óbvio que nessa cena Polônio é, ao mesmo tempo, um cortesão agradando o seu príncipe, e um adulto que não quer contrariar um menino doente, extravagante? Polônio não acredita em Hamlet nem um tantinho, e está certo; com toda a presunção limitada que lhe é própria, ele atribui a extravagância de Hamlet ao amor deste por Ofélia, e nisso, é claro, se engana; mas ele não se engana na avaliação do caráter do príncipe. Os Hamlets certamente são inúteis para a massa; eles não dão nada a ela, não podem conduzi-la a lugar nenhum, porque eles mesmos não vão a lugar nenhum. Sim, e como conduzir quando não se sabe nem se há mesmo terra sob seus pés? Além disso, os Hamlets desprezam a multidão. Quem não respeita a si mesmo, quem ou o que pode respeitar? E, a propósito, será que vale a pena se ocupar da massa? Ela é tão rude e suja! Já Hamlet é um aristocrata, e não só por nascimento. 

Sancho Pança nos apresenta um espetáculo completamente diferente. Ele, ao contrário, ri do Dom Quixote, sabe muito bem que ele é louco, mas três vezes abandona sua pátria, casa, esposa e filha para ir atrás desse homem louco, segue-o por toda parte, submete-se a todo tipo de contrariedade, é leal a ele até a morte, acredita nele, se orgulha dele e soluça de joelhos junto ao pobre leito em que falece seu antigo amo. Não dá para explicar essa lealdade por uma esperança de lucro, de vantagens pessoais; Sancho Pança tem bom senso demais; ele sabe muito bem que, além de surras, o escudeiro de um cavaleiro andante não tem quase nada a esperar. Cabe buscar a razão da lealdade dele mais fundo; ela, se podemos nos expressar assim, se fundamenta naquela que talvez seja a melhor qualidade da massa, na aptidão para um cegamento feliz e honesto (ah! são-lhe familiares outros cegamentos, também), na aptidão para um entusiasmo desinteressado, para desprezar lucros pessoais diretos, o que, para uma pessoa pobre, quase equivale a desprezar o pão cotidiano. Uma característica grandiosa, histórica e universal! A massa dos homens sempre acaba por ir, crendo sinceramente, atrás daquelas personalidades das quais ela mesma escarneceu, aos quais até mesmo amaldiçoou e perseguiu, mas que, sem temer nem as perseguições, nem as maldições dela, sem temer sequer o seu riso, vão em frente sem se desviar, fixando os olhos do espírito no fim que só por eles é visto, caem, se levantam, e enfim encontram... e merecidamente; só quem encontra é aquele a quem o coração conduz. Les grandes pensees viennent du coeur[5], disse Vauvenargues. Já os Hamlets não encontram nada, não inventam nada e não deixam nenhuma marca após si, exceto a marca da própria personalidade, não deixam após si feitos. Eles não amam e não creem; o que é que podem encontrar? Até na química (sem falar da natureza orgânica), para que apareça um terceiro elemento, é necessária a união de dois; mas os Hamlets se ocupam somente de si mesmos; eles são solitários, e por isso infrutíferos.

Mas objetarão: “E Ofélia? Por acaso Hamlet não a ama?” 

Falemos um pouco dela — e, aproveitando o ensejo, da Dulcineia. 

Na atitude de nossos dois tipos para com a mulher também há muito digno de nota. 

Dom Quixote ama Dulcineia, uma mulher inexistente, e está disposto a morrer por ela (lembrem-se das palavras dele quando, vencido, lançado ao pó, ele diz ao vencedor, que já está levantando a lança para feri-lo: “Abata-me, cavaleiro, mas que minha fraqueza não contribua para diminuir a glória de Dulcineia; continuo a afirmar que ela é a beldade mais perfeita no mundo”). Ele ama idealmente, de um jeito puro, tão idealmente que sequer suspeita que o objeto da sua paixão não existe; com tanta pureza que, quando Dulcineia aparece perante ele na forma de uma camponesa estúpida e suja, ele não acredita no testemunho de seus próprios olhos e a considera transfigurada por um bruxo mau. Nós mesmos, na nossa época, nas nossas andanças, vimos pessoas morrerem por uma Dulcineia igualmente pouco existente, ou por alguma coisa estúpida e com frequência suja na qual viam a materialização do seu ideal e cuja transformação elas também imputavam à influência de maus — quase escapou um “bruxos” — maus acasos e personalidades. Nós as vimos, e quando as pessoas desse tipo se extinguirem, que se feche para sempre o livro da História! Não haverá mais nada para ler nele. Não há vestígio de lascívia em Dom Quixote; todos os sonhos deles são pudicos e inocentes, e ele mal conta, nas profundezas de seu coração, com sua união definitiva com Dulcineia, talvez receie até mesmo essa união! 

E Hamlet, por acaso ele ama? Será mesmo que seu próprio irônico criador, profundíssimo conhecedor do coração humano, decidiu dar a um egoísta, a um cético, impregnado de todo o veneno corruptor da análise, um coração amante, dedicado? Shakespeare não caiu nessa contradição, e o leitor atento não terá muito trabalho para se convencer de que Hamlet é um homem sensual e até secretamente lascivo (não é à toa que o nobre Rosencrantz sorri em silêncio quando Hamlet diz, na presença dele, que enjoou das mulheres), que Hamlet, digo, não ama, mas apenas finge que ama, e negligentemente. Nós temos sobre isso o testemunho do próprio Shakespeare. 

Na primeira cena do terceiro ato, Hamlet fala para Ofélia:
Hamlet. Eu um dia te amei.
Ofélia. Príncipe, o senhor me fez acreditar nisso.
Hamlet. Mas não devia ter acreditado!... Eu não te amava.
E, ao dizer essa última frase, Hamlet está bem mais perto da verdade do que ele mesmo supõe. Os sentimentos dele por Ofélia, uma criatura inocente e pura até a santidade, eram ora cínicos (lembrem-se das palavras dele, suas insinuações de duplo sentido, quando ele, na cena da apresentação teatral, pede-lhe permissão para se deitar... nos joelhos dela), ora um palavreado vazio (prestem atenção na cena entre ele e Laerte, quando ele pula no túmulo de Ofélia e fala com uma linguagem digna de Bramarbas ou do capitão Pistola[6]: “Quarenta mil irmãos não poderiam competir comigo! Que despejem sobre nós milhões de acres!” e etc.). Todo o seu relacionamento com Ofélia, mais uma vez, não é nada para ele além de uma ocupação consigo mesmo, e em sua exclamação: “Ninfa, em tuas orações sejam lembrados todos os meus pecados”[7], vemos apenas a profunda consciência da própria impotência doentia — a impotência de amar, inclinada quase supersticiosamente perante uma “relíquia de pureza”. 

Mas já basta de falar dos lados sombrios do tipo hamletiano, dos lados que mais nos irritam justamente por nos serem mais próximos e compreensíveis. Tentemos apreciar aquilo que há nele de legítimo e, portanto, de eterno. Nele está encarnado o princípio da negação, o mesmo princípio que outro grande poeta, separando-o de tudo o que é puramente humano, representou-nos na figura de Mefistófeles[8]. Hamlet é o próprio Mefistófeles, mas um Mefistófeles encerrado no círculo vivo da natureza humana; em razão disso, sua negação não é um mal — ela mesma está direcionada contra o mal. A negação de Hamlet duvida do bem, mas do mal ela não duvida, e entra numa luta encarniçada com ele. Do bem, ela duvida, isto é, começa a suspeitar da sua veracidade e sinceridade, e o ataca não como bem, mas como falso bem, sob cuja máscara novamente se escondem o mal e a mentira, seus arqui-inimigos: Hamlet não gargalha com a gargalhada demoníaca e alheia de Mefistófeles; no próprio sorriso amargo de Hamlet há um desalento que fala dos seus sofrimentos e por isso nos reconcilia com ele. O ceticismo de Hamlet tampouco é indiferença, e nisso consiste seu significado e valor; bem e mal, verdade e mentira, beleza e fealdade não se misturam ante ele em uma única coisa casual, muda, passiva. O ceticismo de Hamlet, não acreditando na existência, por assim dizer, contemporânea da verdade, hostiliza irreconciliavelmente a mentira e bem por isso se torna um dos principais defensores daquela verdade na qual não consegue acreditar por completo. Mas na negação, assim como no fogo, há uma força exterminadora — e como conter esta força dentro de certos limites, como indicar-lhe onde, exatamente, ela deve parar, quando o que ela deve exterminar está com frequência inseparavelmente ligado e fundido ao que lhe cabe poupar? Eis onde aparece para nós a parte trágica da vida humana, tão frequentemente notada: agir demanda vontade, agir demanda reflexão; mas a reflexão e a vontade se separaram e a cada dia se separam mais...
And thus the native hue of resolution
Is sicklied o'er by the pale cast of thought...[9]
...nos diz Shakespeare, pela boca de Hamlet... E eis que de um lado estão os Hamlets, pensativos, conscientes, com frequência compreendendo tudo, mas também com frequência inúteis e condenados à imobilidade; e de outro, os Dons Quixotes meio loucos, que só beneficiam e movem as pessoas porque veem e conhecem apenas um ponto, que com frequência nem existe do jeito que eles o veem. Involuntariamente, surgem questões: será possível que é preciso ser louco para acreditar na verdade? E será possível que a razão que se torna senhora de si por isso mesmo se priva de toda a sua força? 

Mesmo uma discussão superficial dessas questões nos levaria longe. 

Limitemo-nos à observação de que, nessa separação, nesse dualismo que mencionamos, devemos reconhecer a lei inata de toda a vida humana; toda essa vida não é nada além da reconciliação e da luta eternas de dois princípios que se separam e se fundem incessantemente. Se não temêssemos espantar seus ouvidos com termos filosóficos, resolveríamos dizer que os Hamlets são uma expressão da força centrípeta inata da natureza, pela qual todo ser vivo se considera o centro da criação e contempla todo o resto como se existisse somente para ele (é assim que um mosquito, ao pousar na testa de Alexandre, o Grande, com tranquila certeza do seu direito, se alimentava do sangue dele como de um alimento que lhe coubesse; assim também Hamlet, apesar de se desprezar — o que o mosquito não faz, porque não se elevou até esse nível — assim também Hamlet, dizíamos, relaciona tudo a si mesmo constantemente). Sem essa força centrípeta (a força do egoísmo), a natureza não poderia existir, da mesma forma que sem a outra, a força centrífuga, por cuja lei tudo o que existe, existe somente para o outro (essa força, esse princípio de dedicação e sacrifício, iluminado, como já dissemos, pela luz cômica para não ferir o amor-próprio de ninguém — esse princípio é representado pelos Dons Quixotes). Essas duas forças de estagnação e movimento, de conservadorismo e progresso são as forças básicas de tudo o que existe. Elas nos explicam o crescimento de uma flor, e também elas nos dão a chave para a compreensão do desenvolvimento das nações mais poderosas. 

Passemos depressa dessas especulações talvez inconvenientes para outras considerações que nos são mais familiares.

Sabemos que de todas as obras de Shakespeare, a mais popular provavelmente é Hamlet. Essa tragédia integra o número das peças que indubitavelmente e todas as vezes enchem os teatros. Ante a condição atual do nosso público, ante o seu esforço para atingir a consciência de si e a meditação, ante sua dúvida de si e sua juventude, esse fenômeno é compreensível; mas, sem falar das belezas das quais está repleta essa que talvez seja a mais maravilhosa obra de um espírito novíssimo, é impossível não admirar o gênio que, sendo ele mesmo muito parecido com o seu Hamlet, separou-o de si por meio de um livre movimento da força criadora — e expôs sua imagem para a perpétua instrução da posteridade. O espírito que criou essa imagem é o espírito de um homem do norte, o espírito da reflexão e da análise, um espírito pesado, sombrio, privado de harmonia e de tintas claras, não encerrado em formas graciosas, frequentemente mesquinhas, mas profundo, forte, variegado, independente, dirigente. Ele extraiu o tipo do Hamlet das suas próprias entranhas, e com isso mostrou que, tanto no campo da poesia, como nos demais campos da vida do povo, estava acima do seu filho, porque o entendia completamente.
O espírito do homem do sul repousou na criação de Dom Quixote, um espírito luminoso, divertido, ingênuo, receptivo, que não vai até o fundo da vida, não abarca, mas reflete todos os seus fenômenos. Não conseguimos resistir aqui ao desejo de não traçar paralelo entre Shakespeare e Cervantes, mas apenas apontar para alguns pontos de distinção e de semelhança entre eles. Shakespeare e Cervantes, pensarão alguns, que comparação pode haver aqui? Shakespeare é um gigante, um semideus... Sim, porém Cervantes não é nenhum pigmeu na presença do gigante que criou o Rei Lear, mas um homem, e um homem completo; e um homem tem o direito de estar de pé até mesmo perante um semideus. É indiscutível, Shakespeare esmaga Cervantes — e não apenas ele — com a riqueza e o vigor da sua fantasia, o brilho de sua elevadíssima poesia, a profundidade e a amplitude de seu enorme intelecto; mas vocês não encontrarão no romance de Cervantes nem chistes forçados, nem comparações antinaturais, nem metáforas extravagantes demasiado adocicadas; vocês tampouco encontrarão nas páginas dele essas cabeças decepadas, olhos arrancados, todos esses dilúvios de sangue, essa crueldade férrea e estúpida, terrível herança da idade média, da barbárie que desaparece mais devagar nas naturezas teimosas do norte; e, entretanto, Cervantes, assim como Shakespeare, foi contemporâneo da noite de São Bartolomeu[10]; e por muito tempo após a morte deles ainda queimaram hereges e o sangue jorrava; e, afinal, será que um dia ele deixará de jorrar? A idade média se manifestou em Dom Quixote por meio do brilho da poesia provençal, pela graça fantástica dos próprios romances dos quais Cervantes zombava de um jeito tão bonachão, e aos quais ele mesmo prestou um último tributo em Os trabalhos de Persiles e Sigismunda[11]. Shakespeare toma as suas imagens de qualquer lugar — do céu, da terra — nada é proibido para ele; nada consegue evitar seu olhar que tudo penetra; ele as arranca com uma força irresistível, com a força de uma águia mergulhando sobre sua presa. Cervantes carinhosamente faz desfilar perante o leitor seus pouco numerosos retratos, como um pai faria desfilarem os seus filhos; ele só toma aquilo que lhe é próximo, mas esse próximo ele conhece tão bem! Tudo o que é humano parece sujeito ao poderoso gênio do poeta inglês; Cervantes haure sua riqueza apenas da própria alma, clara, dócil, rica em experiência de vida, mas não endurecida por ela; não foi à toa que, durante um terrível cativeiro de sete anos, Cervantes estudou, como ele mesmo disse, a ciência da paciência[12]; o círculo do que lhe está sujeito é mais estreito que o de Shakespeare; mas nele, assim como em cada ser vivo em particular, se reflete tudo o que é humano. Cervantes não vos iluminará com uma palavra fulminante; não vos fará tremer com a força titânica da inspiração triunfante; sua poesia não é o mar shakespeariano, por vezes turvo — é um rio profundo, que corre tranquilamente por entre margens variegadas; e pouco a pouco cativado, envolvido de todos os lados por suas ondas transparentes, o leitor alegremente se entrega ao silêncio verdadeiramente épico e à suavidade da correnteza dele. A imaginação evoca com gosto as imagens de ambos os poetas, contemporâneos um do outro, que até morreram no mesmo dia, 26 de abril de 1616. Cervantes, provavelmente, nada sabia sobre Shakespeare; mas o grande tragediógrafo, no silêncio de sua casa em Stratford-upon-Avon, para onde se retirou três anos antes de sua morte, pôde ler o famoso romance, que já fora, na ocasião, traduzido para o inglês. Um quadro digno do pincel de um pintor filósofo: Shakespeare lendo Dom Quixote! Felizes são os países nos quais surgem tais pessoas, mestres dos contemporâneos e da posteridade! Os louros imperecíveis com os quais se coroa um grande homem jazem também sobre a fronte da sua nação. 

Terminando meu estudo nem de longe completo, peço permissão para comunicar-vos ainda algumas observações isoladas.

Certo lorde inglês (um bom juiz nesse assunto) chamou Dom Quixote, em nossa presença, de retrato de um verdadeiro gentleman. De fato, se a simplicidade e a calma no tratamento servem de sinal distintivo do que chamam de pessoa digna, Dom Quixote tem pleno direito a esse título. Ele é um verdadeiro hidalgo, um hidalgo mesmo quando as zombeteiras servas do duque lhe ensaboam todo o rosto. A simplicidade das suas maneiras provém da ausência daquilo que decidimos chamar não de autoestima, mas de superestima; Dom Quixote não se ocupa de si mesmo e, respeitando a si e aos outros, não pensa em se exibir; já Hamlet, apesar do ambiente elegante de que provém, parece-me, desculpem a expressão francesa, “ayant des airs de parvenu[13]; ele é ansioso, por vezes até rude, faz pose e escarnece. Em compensação, foi-lhe dada uma força de expressão singular e certeira, uma força inerente a toda personalidade que reflete sobre si e se aprimora — e, portanto, de todo inacessível a Dom Quixote. A profundidade e a sutileza de análise de Hamlet, sua erudição multifacetada (não se deve esquecer que ele estudava na Universidade de Wittenberg) desenvolveram nele um gosto quase impecável. Ele é um crítico magnífico; seus conselhos aos atores são assombrosamente justos e inteligentes; o senso de elegância é quase tão forte nele quanto o senso do dever em Dom Quixote.

Dom Quixote. Salvador Dalí, 1960.
Dom Quixote respeita profundamente todas as instituições existentes, a religião, os monarcas e duques, e ao mesmo tempo é livre e reconhece a liberdade dos outros. Hamlet xinga o rei, os cortesãos — e no fundo é opressivo e impaciente. 

Dom Quixote mal sabe ler e escrever, Hamlet provavelmente mantinha um diário. Dom Quixote, apesar de toda a sua ignorância, tem um modo de pensar definido sobre os assuntos do Estado, sobre a administração; Hamlet não tem tempo e nem para que se ocupar com isso. 

Levantaram muitas objeções contra as surras infindas com as quais Cervantes sobrecarrega Dom Quixote. Observamos acima que, na segunda parte do romance, quase nem batem mais no pobre cavaleiro; mas cabe adicionar que, sem essas surras, ele agradaria menos às crianças que com tão avidamente leem suas aventuras — e, de fato, mesmo para nós, adultos, ele não apareceria em sua verdadeira luz, mas de um modo um tanto frio e arrogante, o que contradiria seu caráter. Acabamos de dizer que na segunda parte já não o espancam; mas bem no final dela, após a derrota definitiva de Dom Quixote pelo Cavaleiro da Lua Branca, o bacharel disfarçado, depois da renúncia dele à cavalaria, pouco tempo antes de sua morte — uma vara de porcos o pisoteia. Mais de uma vez tivemos ocasião de ouvir censuras a Cervantes — para que ele escreveu isso, como que repetindo piadas antigas, já abandonadas? Mas também aqui o instinto do gênio dirigia Cervantes — e bem nessa aventura vil se encontra um sentido profundo. Na vida dos Dom Quixotes, sempre encontramos o pisoteamento por pés de porco — precisamente perto do fim dela; é o último tributo que eles têm de pagar ao rude acaso, à incompreensão indiferente e atrevida... É o tabefe do fariseu... Depois eles podem morrer. Passaram por todo o fogo do crisol, conquistaram para si a imortalidade — e ela se desvela aos olhos deles. 

Hamlet, quando tem chance, é pérfido e até cruel. Lembrem-se da morte, arquitetada por ele, dos dois nobres enviados pelo rei para a Inglaterra, lembrem-se de seu discurso a respeito de Polônio, assassinado por ele. A propósito, vemos nisso, como já se disse, um reflexo da idade média, que findara havia pouco. Por outro lado, no honesto, veraz Dom Quixote somos obrigados a notar uma inclinação para um engano meio consciente, meio inocente, para a autoilusão — uma inclinação quase sempre presente na fantasia do entusiasta. Seu relato do que ele viu na caverna de Montesinos foi evidentemente inventado por ele e não enganou um pateta astuto como Sancho Pança. 

Hamlet se desanima e se queixa ao menor infortúnio; já Dom Quixote, esfaqueado por condenados das galés até a impossibilidade de se mexer, não duvida nem um pouco do sucesso de seu empreendimento. Dizem que Fourier[14] ia todos os dias, durante muitos anos, encontrar-se com um inglês que ele chamou pelos jornais para prover-lhe um milhão de francos a fim de pôr em prática os seus planos e que, naturalmente, nunca apareceu. Isso é indiscutivelmente muito cômico; mas eis o que nos vêm à mente: os antigos chamavam os seus deuses de invejosos — e em caso de necessidade consideravam útil amansá-los com sacrifícios voluntários (lembrem-se do anel lançado ao mar por Polícrates[15]); por que é que nós também não deveríamos pensar que uma fração de comicidade deve inevitavelmente misturar-se aos atos, ao próprio caráter das pessoas chamadas para uma nova causa grandiosa, como um tributo, como um sacrifício apaziguador aos deuses invejosos? E mesmo assim, sem esses cômicos Dons Quixotes, sem esses esquisitões-inventores, a humanidade não progrediria — e os Hamlets não teriam sobre o que refletir. 

Sim, repetimos: os Dons Quixotes encontram — os Hamlets aprimoram. Mas como é, nos perguntarão, que os Hamlets podem aprimorar alguma coisa, quando eles duvidam de tudo e não creem em nada? A isso replicaremos que, por uma sábia disposição da natureza, não há Hamlets completos, como também não há Dons Quixotes completos: essas são apenas as expressões extremas de duas orientações, marcos postos pelos poetas nos dois caminhos diferentes. A vida corre para eles, sem nunca os alcançar. Não se deve esquecer que, como o princípio da análise foi levado, em Hamlet, até a tragicidade, assim também o princípio do entusiasmo, em Dom Quixote, foi levado até a comicidade, e na vida raramente se encontra algo totalmente cômico ou totalmente trágico. 

Hamlet ganha muito aos nossos olhos pelo apego de Horácio a ele. É uma personalidade fascinante e a encontramos com bastante frequência na nossa época, para a honra de nossa época. Em Horácio reconhecemos o tipo do seguidor, do discípulo no melhor sentido dessa palavra. Com um caráter estoico e direto, um coração ardente, uma mente um tanto limitada, ele sente sua insuficiência e é modesto, o que raramente acontece com as pessoas limitadas; ele tem sede de ensinamentos, preceitos, e é por isso que venera o inteligente Hamlet e se dedica a ele com todas as forças de sua alma honesta, sem sequer exigir reciprocidade. Ele se submete a Hamlet não como príncipe, mas como cabeça. Um dos mais importantes méritos dos Hamlets consiste no fato de que eles formam e desenvolvem pessoas como Horácio, pessoas que, tendo recebido deles sementes de pensamento, frutificam-nas em seu coração e as espalham depois pelo mundo inteiro. As palavras pelas quais Hamlet reconhece o significado de Horácio honram ao próprio Hamlet. Nelas se expressam as próprias noções dele a respeito do elevado valor do homem, suas inclinações nobres, que nenhum ceticismo é capaz de enfraquecer. “Você me escuta?”, ele lhe diz,
Desde quando minha alma preciosa
se tornou senhora de vontade própria,
E aprendeu a distinguir entre os homens,
Ela te elegeu para ela.
Porque você foi sempre uno,
Sofrendo tudo e não sofrendo nada;
Um homem que agradece igual
Bofetadas e carícias da fortuna... Felizes esses
Nos quais paixão e razão vivem em tal harmonia
Que não se transformam em flauta onde o dedo da sorte
Toca a nota que escolhe.
Me mostra o homem que não é escravo da paixão
E eu o conservarei no mais fundo do peito,
É, no coração do coração —
o que faço contigo.[16]
Um verdadeiro cético sempre respeita um estoico. Quando o mundo antigo estava desmoronando, e em cada época parecida àquela, as melhores pessoas corriam para o estoicismo como para o único refúgio onde ainda se podia conservar o valor humano. Os céticos, se não tinham forças para morrer — partir para “o país não descoberto, de cujos confins jamais voltou nenhum viajante”[17] —, se tornavam epicuristas. Um fenômeno compreensível, triste e que nos é demasiado familiar! 

Tanto Hamlet quanto Dom Quixote morrem de maneira tocante; mas quão distintas são as mortes deles! São incríveis as últimas palavras de Hamlet. Ele se domina, se aquieta, ordena a Horácio que viva, dá seu voto agonizante em favor do jovem Fortinbrás, representante sem qualquer mácula do direito de sucessão... mas o olhar de Hamlet não se volta para o que vem adiante... “O resto... é silêncio”, diz o cético moribundo, e de fato silencia para sempre. A morte de Dom Quixote inspira à alma um enternecimento indizível. Nesse instante, todo o grandioso significado dessa personalidade se torna acessível a cada um. Quando seu antigo escudeiro, desejando consolá-lo, diz-lhe que eles logo partirão novamente em aventuras de cavalaria: “Não”, responde o moribundo, “tudo isso passou para sempre, e eu peço perdão a todos; já não sou Dom Quixote, sou novamente Alonso, o Bom, como outrora me chamavam”[18]Alonso, El Bueno

Essa palavra é surpreendente; a menção deste apelido, pela primeira e pela última vez, comove o leitor. Sim, essa é a única palavra que ainda tem sentido ante a face da morte. Tudo passa, tudo desaparece, o título mais elevado, o poder, o gênio que tudo compreende, tudo se desfaz em pó...
Tudo o que é grande na terra
Se dissipa qual fumaça...[19]
Mas as boas obras não se dissipam qual fumaça; elas são mais duradouras que a beleza mais resplandecente. “Tudo passa”, disse o apóstolo, “só o amor permanece”[20]

Nada nos resta a acrescentar após essas palavras. Considerar-nos-emos felizes se, pela indicação das duas orientações inatas do espírito humano, sobre as quais falamos na sua presença, despertamos nos senhores alguns pensamentos, mesmo que não acordes com os nossos — se cumprimos nossa tarefa, ou pelo menos nos aproximamos disso, e não aborrecemos sua benévola atenção.

Tradução de Érika Batista




[1] Discurso proferido em 10 de janeiro de 1860, numa leitura pública, em favor da Sociedade para subvenção de literatos e cientistas em necessidade. Conforme publicado na edição Obras em 12 tomos: quinto tomo // Obra completa e cartas em trinta tomos. 2ª ed., corrigida e ampliada. Moscou: Nauka, 1980.
[2] Wer den Dichter will verstehen / Muß ins Dichters Lande gehen. Versos finais da epígrafe ao livro West-östlicher Divan, publicado em 1819. (N. da T.)
[3] Verso do poema “Nie vier’ sebiê” (Não confie em si), de Mikhail Lérmontov (1814-1841), datado de 1839. (N. da T.)
[4] No poema Poslanie Del’vigu (Carta a Delvig), de 1827.
[5] Os grandes pensamentos vêm do coração (franc.). (N. do A.)
[6] Personagem do livro de mesmo nome de Ludvig Holberg, publicado em 1741, que fez o termo “Bramarbas” virar sinônimo de fanfarrão. Capitão Pistola é um personagem da tragédia shakespeariana Henrique IV. (N. da T.)
[7] Tradução de Millôr Fernandes, de 1988.
[8] Demônio personagem do poema épico Fausto, de Johann W. Von Goethe (1749-1832), publicado em 1829. (N. da T.)
[9] “Assim da reflexão à luz mortiça/ A viva cor da decisão desmaia...”. Tradução de Machado de Assis. (N. da. T.)
[10] A noite de São Bartolomeu foram matanças organizadas pelos reis franceses, à época católicos, entre 23 e 24 de agosto de 1572, em Paris, como parte da campanha de combate ao protestantismo, na qual foram assassinadas entre cinco e trinta mil pessoas. (N. da T.)
[11] Sabe-se que o romance de cavalaria Os trabalhos de Persiles e Sigismunda surgiu depois da primeira parte de Dom Quixote. (N. do A.)
[12] Na verdade, Cervantes ficou cinco anos em cativeiro na Argélia (à época, Argel), após ter sido capturado por corsários em 1575. (N. da T.)
[13] Tem ares de novo rico (em francês no original). (N. T.)
[14] Jean-Baptiste Joseph Fourier (1768-1830), importante matemático e físico francês. Envolveu-se ativamente na Revolução Francesa. (N da. T.)
[15] Polícrates foi o tirano da Ilha de Samos entre 538 e 522 a. C.. De acordo com o historiador Heródoto, o faraó Ahmés II, aliado político de Polícrates, aconselhou-o a jogar fora aquilo que ele considerava mais valioso, para evitar uma súbita guinada na maré de sorte que Polícrates parecia viver incessantemente. Assim, Polícrates jogou no mar um anel incrustado de pedras preciosas que ele tinha. Dias depois, porém, um pescador pescou um peixe enorme e quis dividi-lo com o tirano. Quando o cozinheiro abriu o peixe, encontrou o anel de Polícrates, que fora engolido pelo animal. Ahmés II achou que era sorte demais e rompeu a aliança com o grego. (N. da T.)
[16] Hamlet. Tradução de L. Kroneberg. Carcóvia. 1844, p. 107. (N. do A.) Em português, o trecho foi extraído da tradução de Millôr Fernandes, de 1988. (N. da T.)
[17] Frase do famoso monólogo de Hamlet, que inicia com “Ser ou não ser, eis a questão”, na tradução de Millôr Fernandes, de 1988. (N. da T.)
[18] Aqui Turguêniev faz uma paráfrase da seguinte passagem do último capítulo de Dom Quixote: — Felicitai-me, bons senhores, porque já não sou dom Quixote de la Mancha, mas Alonso Quixano, a quem meus costumes deram fama de “bom”. (CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote de la Mancha. Vol. 2. Tradução e notas de Ernani Ssó. Penguin – Companhia das Letras). (N da T.)
[19] “Tudo o que é grande na terra / Se dissipa qual fumaça / Hoje a sorte caiu ao Três / Amanhã cairá a outro”. Trecho do poema “Torjestvo pobeditelei” (O triunfo dos vencedores), publicado em 1829 por Vassíli Jukóvski (1783-1852), e que, por sua vez, é tradução da balada “Das Siegesfest” do poeta alemão Johann Friedrich Schiller (1759-1805). (N. da T.).
[20] Paráfrase do versículo 13 do capítulo 13 da 1ª Epístola de São Paulo aos Coríntios, a saber: “Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior destes é o amor” (tradução Almeida Corrigida Fiel). (N. da T.)

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