Há muito eu suspeitava que o cachorro é muito mais inteligente do que o homem; tinha até certeza de que ele consegue falar, não o faz por uma espécie de teimosia.
Gógol olha para o limite e diz "kkkk, limites" |
Quando escrevi o primeiro artigo dessa série, sobre o conto O nariz, minha intenção era seguir logo com uma resenha de O capote, outro conto do Gogol que eu já li e reli, li no original, escutei em audiolivro, mais um pouco e aprendo de cor. Mas ainda não estou pronta para essa conversa. A importância de O capote para a literatura russa é tamanha, apesar de se tratar de um texto curto, que temo deixar de fora algum ponto importante ao abordá-lo assim de passagem.
Quase dois anos se passaram, e eu não tinha pegado mais nada do Gogol que pudesse ser lido assim de um gole só. Até ontem.
Nikolai Gogol é o autor do mês de abril do Desafio Literário “Um Ano de Literatura Russa”, promovido pela página Literatura Russa para Brasileiros. Eu tinha me planejado para reler a peça O inspetor-geral, mas como ainda estou avançando aos poucos em Doutor Jivago, decidi trocar a escolha inicial por uma obra ainda menor, o conto Diário de um louco, que eu já tinha visto alguns colegas leitores elogiarem no Clube de Leitura do desafio.
E o Diário de um louco não deixou mesmo a desejar em termos de qualidade.
Escrito em 1834 e publicado em 1835 na coletânea Arabescos, que também continha O retrato, Avenida Niévski, entre outros textos menos conhecidos por aqui, Diário de um louco é a única obra em primeira pessoa do Gógol. Sua criação teria sido inspirada numa suposta conversa do autor com um médico, sobre o comportamento de um louco, bem como na leitura de livros de E. T. A. Hoffman e outros autores românticos alemães e russos.
Como o nome já diz, o conto se compõe das anotações de um homem à beira da loucura que, no decorrer da história, enlouquece de todo. Ele aparenta sofrer de esquizofrenia e megalomania.
Um típico pequeno homem, de origem nobre, porém pobre como um gato e detentor de um título insignificante na hierarquia do serviço público russo, Aksênti Ivanovitch Popríschin acredita gozar do favor do diretor de seu departamento, por cuja filha ele tem uma queda. Também acredita que o sentimento seja recíproco, e as repreensões que recebe de seu chefe imediato, quando este nota suas intenções de cortejar a moça, Aksênti imputa a uma perseguição motivada pela inveja.
Quando descobre — por um meio um tanto inusitado: a correspondência entre dois cachorros — que sua amada o acha ridículo e que está para se casar com um nobre de cargo mais elevado, Popríschin surta de vez.
Só dá valete da corte ou general. Tudo o que há de bom no mundo, tudo fica para os valetes da corte ou os generais.
Sem conseguir aceitar o desprezo que sofre e sua própria condição, e impressionado por uma notícia que lera a respeito da sucessão do trono da Espanha, ele atribui-se uma nova identidade:
O dia de hoje é um dia de grande triunfo! A Espanha tem rei. Encontraram-no. Esse rei sou eu. Foi só hoje que eu descobri isso. Confesso, foi como se de repente um raio tivesse me iluminado. Não entendo como pude pensar e imaginar que sou um conselheiro titular. Como foi que esse pensamento louco pôde entrar na minha cabeça? Que bom que na época ninguém pensou em me colocar no hospício.
Seu delírio não tem muito tempo para se expandir em liberdade. Logo levam-no para um manicômio, e ele vai de bom grado, pensando se tratar da Espanha.
Ali, seu quadro vai de mal a pior, o que se nota pelo tom cada vez mais desconexo das entradas do diário, até na marcação da data. E não é para menos: o tratamento a que o submetem é desumano, embora típico para a época. Baseia-se em jogar água fria na cabeça dos doentes sempre que eles manifestam suas alucinações.
A época remota em que viveu o autor não permite apostar em uma crítica intencional aos tratamentos psiquiátricos desumanos que perduraram até meados do século XX. Mas essa crítica está presente, quer o autor a tenha colocado ali de propósito ou por acidente.
Você vai lendo e rindo das excentricidades de Popríschin, quiçá até antipatizando com a mania de grandeza que ele manifesta ao fazer pouco caso dos lacaios e de quase qualquer um que não tivesse origem nobre.
Nas ruas não havia ninguém; meus olhos batiam só em umas mulheres, cobertas com as abas do lenço, alguns comerciantes russos debaixo de guarda-chuvas, e também uns moços de recados. Dos nobres, deparei-me só com um colega funcionário público. Vi-o no cruzamento.
Os acontecimentos evoluem, porém, e logo nos vemos penalizados e até um pouco culpados por ter rido dele, quando percebemos a dimensão de seu desamparo.
Eles despejam água fria na minha cabeça! Não prestam atenção, não me veem, não me escutam. O que foi que eu lhes fiz? Por que me torturam? O que eles querem de mim, desse coitado? O que eu posso lhes dar? Não tenho nada. Não tenho forças, não consigo suportar todos esses tormentos, minha cabeça arde, e tudo à minha frente gira. Salvem-me! levem-me embora!
O descompasso entre a realidade e o mundo próprio em que sua mente vive impede que Popríschin ponha fim ao ciclo de castigos dizendo o que seus algozes querem ouvir. É difícil não se comover e não se indignar com a tacanhice dos enfermeiros, que tratam Popríschin como se ele fosse um malandro fingido.
Ainda mais porque, para nós, leitores, a evolução da doença dele é claramente visível nas anotações, que vão se tornando cada vez mais desconexas, até mesmo nos títulos. Popríschin começa datando os registro corretamente, apesar de episódios esquisitos lhe ocorrerem, como testemunhar a conversa entre dois cachorros. À medida em que seu quadro se agrava, porém, ele aponta dias impossíveis, esquece o ano, mistura nomes de meses, e chega até a embaralhar letras e números, na última anotação, já no manicômio.
Aliás, essas últimas anotações levantam indagações sobre a natureza da narrativa. A palavra traduzida por Diário no nome do conto é Zapíski, que tem várias outras traduções possíveis, e deriva do verbo zapisat’, anotar. Mas como ele poderia estar anotando alguma coisa após ter perdido a razão e estando num manicômio em que deixavam os doentes perambulando largados pelos aposentos até a hora dos tratamentos de choque? Difícil acreditar que os enfermeiros que vieram buscá-lo deixariam ele levar um diário, ou que ele, acreditando estar indo para sua coroação como rei da Espanha, se atentaria em carregar consigo os papéis. Por isso há quem especule que as “anotações” de Popríschin estão mais para monólogos internos, o que, todavia, não explica as datas das entradas.
Outra questão que intriga os comentaristas é a tal correspondência das cachorrinhas, confiscada por Popríschin. As cartas, em que pese fruto de alucinação, contêm detalhes verdadeiros, de fatos e cenas que Popríschin não conhecia antes. Como eles foram parar lá? Será que o inconsciente dele captou sinais, decifrando-os e apresentando-os por meio de um delírio? Será que ele soube das informações por outras fontes e sua mente as remanejou para compor as cartas? Ou será que os fatos que desencadearam seu surto eram totalmente imaginados, sem qualquer ligação com a realidade?
A verdade é que não importa. Diário de um louco, assim como O nariz e outras obras de Gógol, pertence ao gênero do absurdo, do qual o escritor é considerado um dos pais, em toda a literatura mundial. A marca desse gênero é, justamente, uma relação frouxa com a plausibilidade e a coerência, seja no sistema interno da obra, como em relação à vida real. Outros autores da literatura do absurdo são Daniil Kharms, Kafka, Samuel Beckett e Eugène Ionesco.
Cabe ressaltar, por fim, que, apesar da aparente incoerência de alguns pontos do conto, ele é muito bem construído, como demonstra o fato de Popríschin não querer encomendar seu manto real, mas fazê-lo ele mesmo a partir do uniforme de funcionário público, cortado e rearranjado. O detalhe simboliza a transfiguração da personalidade do protagonista, meio ousadamente, por iniciativa própria, meio às furtadelas.
Situações, opiniões e frases inteiras que aparecem na primeira fase, quando Popríschin ainda conserva alguma razão, reaparecem transformadas quando ele já está no sanatório, por exemplo quando ele diz que o cachorro é um político talentoso, e depois fala a mesma coisa sobre os ingleses.
E ecoam no texto outras obras de Gógol. Narizes, por exemplo, são citados inúmeras vezes, em colocações interessantes como “quase descolei o nariz”, “o nariz dele não é feito de ouro”, a cachorrinha querendo pegar Popríschin pelo nariz com os dentes, ou a teoria de que não vemos nossos narizes porque eles vivem na lua. É impossível não lembrar de O nariz com todos os seus simbolismos.
Diário de um louco inaugura, além disso, o tema da loucura na literatura russa, tema que jamais se afastaria da pena dos escritores do país.
Mais ou menos na mesma época, saiu a novela em prosa de Púchkin O cavaleiro de bronze, em que o herói, também funcionário público, enlouquece, também após ser impedido de concretizar seu amor. Tolstói tem seu próprio Diário de um louco; Tchékhov toca o assunto em Enfermaria n. 6 e resvala nele em A crise; Leonid Andreiev tem alguns contos sobre o tema, com destaque para O riso vermelho, que também assume a forma das anotações de alguém que perdeu o juízo.
Em Dostoiévski — cuja obra é sabidamente influenciada por Gógol — , podemos ver ecos de Popríschin em vários de seus personagens “pequenos homens”: nos devaneios do Sonhador de Noites brancas; na presunção do homem do subsolo; e, principalmente, no destino do protagonista de O duplo, de quem nos despedimos um pouco antes, sem entrar com ele no hospício.
Além disso, uma das datas de Popríschin (86 de marçubro) ganhou especial repercussão na literatura russa do século XX, sendo citada por Bródski, Nabokov (em uma tradução da Alice de Lewis Carroll) e Maksimilian Volóshin, que usou o mês maluco para aludir à Revolução de outubro em seu poema Rossiya (Rússia).
Em suma, na complexa parede da literatura mundial, Diário de um louco é um dos tijolinhos que está lá nos fundamentos. Pode ser menos conhecido, meio oculto sob a terra, mas sua importância não deve ser subestimada.
Obrigada por compartilhar
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