Retrato de Nikolai Karamzin. Aleksei Venezianov, 1828. |
Que tal falarmos de polêmica para afastar a domingueira? Mais especificamente, de uma polêmica literária superada há duzentos anos, mas que marcou o início da Era de Ouro da literatura russa e teve grande importância para seu desenvolvimento: trata-se da polêmica entre os ARCAÍSTAS, ou chíchkovistas, contra os INOVADORES, ou karamzinistas.
Durante a maior parte do século XVIII na Rússia, a literatura nacional que começava a surgir, em grande parte imitando modelos franceses ou de outros países, ainda estava atrelada aos valores estéticos e ideológicos do classicismo, forjados na Europa na esteira do Renascimento. O principal valor dessa corrente era o racionalismo: a Razão exaltada em contraposição à superstição medieval; a Razão como princípio de organização da natureza e da sociedade e que devia se manifestar em tudo, inclusive na arte. Essa organização racional do mundo implicava também em que tudo e todos tivessem o seu lugar e sua função na sociedade, o que gerava um senso de hierarquia forte, expresso inclusive nas artes.
O poeta também tinha uma função social, a saber, edificar a sociedade, seja louvando as virtudes e façanhas dos grandes homens em odes, epopeias, tragédias e outras formas poéticas solenes e laudatórias (gêneros elevados), ou apontando e ridicularizando seus vícios, por meio da sátira, da comédia ou das fábulas (gêneros baixos). Havia também os gêneros intermediários (elegia, epístola, canção), de caráter mais pessoal, e por isso negligenciados na época. A cada um desses gêneros correspondia uma linguagem: o estilo baixo permitia coloquialismos e até vulgaridades — parecido com o que o nosso barroco Gregório de Matos fazia no seu poeta. Já o estilo elevado pendia para uma linguagem intrincada, buscada no eslavo antigo e em empréstimos do grego. Afinal, também há, nessa época, um resgate dos saberes e mitos do mundo antigo, especialmente da cultura greco-romana e das formas e doutrinas consagradas pelos pensadores e poetas daquela cultura — os clássicos.
Então, no final do século XVIII, sob influências como “A Nova Heloísa” de Rousseau ou as obras do escritor inglês Samuel Richardson, surgiu na Rússia uma corrente sentimentalista, com valores estéticos diferentes do classicismo, cujo principal expoente foi Nikolai Karamzin, com sua obra “Pobre Liza” (1792). Além da temática da obra — que versava sobre sentimentos e relações interpessoais, e não sobre a moral social —, Karamzin inovou também na linguagem, importando estruturas linguísticas francesas. Um exemplo é a palavra “влияние” (vliiânie, influência), usada por ele para traduzir o francês “influance” sem ligar para o campo semântico e as regras que essa palavra teria no uso tradicional da língua russa.
Uma fração dos literatos da época ficou revoltada com as inovações introduzidas por Karamzin, e, em 1803, um de seus representantes, o poeta e militar Aleksandr Chíchkov, publica o artigo “Рассуждение о старом слоге и о новом слоге на русском языке” (Reflexão sobre o velho estilo e o novo estilo na língua russa), de onde foi tirado o exemplo acima e que tem alguns trechos que elucidam bem a razão da indignação:
“O eslavo antigo, pai de muitas linguagens, é a raiz e o princípio da língua russa, que em si mesma sempre foi abundante e rica, mas floresceu e enriqueceu ainda mais pelas belezas emprestadas da língua dos helenos (...). Quem imaginaria que nós, abandonando essa base do nosso idioma estabelecida por muitos séculos, começaríamos a recriá-lo sobre a pobre base do idioma francês?”
Outro ponto da reforma linguística de Karamzin, talvez o mais importante, está no aperfeiçoamento de uma linguagem intermediária, que, sem recair no “baixo estilo”, fosse mais simples e mais fácil de ler e de manejar que o elaborado e um tanto obsoleto “alto estilo”. Essa faceta do legado dele, junto com a temática sentimental e mais individualista, exerceu forte influência na geração que cresceu enquanto ele publicava suas obras literárias (mais tarde, Karamzin passou a se dedicar mais à História). Por isso, os defensores da nova forma de fazer literatura passaram a se chamar “karamzinistas” — mesmo quando se afastaram do sentimentalismo exacerbado para algo mais próximo do romantismo europeu.
A polêmica entre os arcaístas e os partidários da inovação, porém, entrou século XIX adentro e arrastou-se por pelo menos duas décadas. Na década de 1810 ela ainda era tão forte que deu origem a duas sociedades literárias opostas, cada uma representando os valores de uma dessas correntes.
Em 1811, Chíchkov e Gavrila Derjávin — um dos mais importantes poetas do século XVIII — fundaram a “Беседа любителей русского слова” (Conferência dos Amantes da Palavra Russa), um círculo literário que se reunia periodicamente no salão da casa de Derjávin, especialmente decorado por um cenógrafo famoso para as reuniões. No centro, havia mesas para os membros, e, ao longo das paredes, três arquibancadas para o público: as reuniões eram abertas a terceiros. Tudo era marcado pela solenidade e pela hierarquia. Para se ter uma ideia, seus frequentadores deviam comparecer em traje de gala, “em respeito à literatura”. Os membros dividiam-se em quatro classes, cada uma presidida por um dos fundadores ou outros dois poetas renomados, os quais eram responsáveis por corrigir os trabalhos dos membros do seu grupo, cobrá-los sobre os trabalhos a serem lidos nas sessões... Essas leituras, que podiam ser feitas pelo próprio membro autor da obra ou outro membro, eram realizadas perante os “mestres” — os poetas mais conceituados — que avaliavam as obras dos poetas mais novos e davam conselhos sobre como melhorá-las. Entre os membros da “Beseda” estava o fabulista Ivan Krílov e havia até algumas mulheres, como Anna Petrovna Búnina, a despeito do tradicionalismo do órgão. Às sessões compareciam também Pavel Katenin e Wilhelm Küchelbecker, então bem novinhos, mas que aproveitariam algumas das ideias estéticas da “Beseda” mais tarde na sua poesia dezembrista.
Membros da "Beseda liubitelei russkogo slova". Da esquerda para a direita: Chíchkov, Derjávin, Anna Búnina, Krílov e Aleksandr Aleksandrovitch Chakhovskói. |
Ironicamente, os inovadores botaram em prática um gênero típico do classicismo — a troça — para criticar a “Beseda” e a corrente literária que representava, destruir os seus resquícios obsoletos, expondo-lhes as facetas absurdas. Konstantin Bátiuchkov, um dos “inovadores”, escreveu pelo menos dois poemas longos em que zombava tanto dos arcaístas, como das poetisas russas de então e até de sentimentalistas extremos como o príncipe Piótr Chálikov. Em um deles, o “Видение на берегах Леты” (Visão às margens do Lete), de 1809, o poeta narra um sonho em que testemunha o afogamento e o perecimento dos rivais das categorias criticadas no Lete, o rio do esquecimento na mitologia grega, por castigo de Apolo — o deus da música e da poesia — a quem eles tinham irritado, ao que tudo indica, pela má qualidade da sua produção artística.
Em 1815, os inovadores criaram a sociedade literária “Arzamas”, um alegre círculo de amigos cujo funcionamento parodiava propositalmente a solenidade das sessões da “Beseda”. O presidente da “Arzamas” era o tradutor e poeta Vassíli Jukóvski, importantíssimo representante do romantismo russo e da escola elegíaca. Frequentavam-na também o supracitado Bátiuchkov, Aleksandr Turguêniev, Piótr Viázemski, Vassíli Lvóvitch Púchkin e, mais tarde, trazido por ele, seu sobrinho, que se tornaria o mais notório de todos, Aleksandr Púchkin.
Arzamas. Jukóvski, Bátiuchkov, Viázemski, Vassíli e Aleksandr Púchkin, da esquerda para a direita. |
Eles se tratavam por apelidos tirados das baladas de Jukóvski — o próprio era “Svetlana”, Viázemski era “Asmodeus” (Asmodei), Aleksandr Púchkin virou o “Grilo” (Svertchok). O mascote da sociedade era um ganso da raça da cidade de Arzamas — prato frequente entre os seus quitutes.Nas reuniões, eles liam epigramas, protocolos de brincadeira e analisavam criticamente as obras uns dos outros. Um exemplo da produção do círculo é o epigrama de A. Púchkin sobre Ekaterina Pútchkova, uma discípula dos arcaístas, de 1816:
Por que tu gritas que és donzelaEm cada verso teu de moça?Oh, entendi, cantora bela:É que de noivo andas à caça.
A “Beseda” foi dissolvida em 1816. Um eco de suas tradições aparece, como já se disse, na poesia dezembrista, pois os valores de edificação moral da sociedade e louvor das virtudes casam bem com o caráter político e social dos representantes dessa escola.
A “Arzamas” funcionou até 1818. Os ideais literários defendidos pelos inovadores podem ser considerados os “vencedores” da polêmica, em linhas gerais. O que não é de se surpreender, já que eles eram mais alinhados com o romantismo, a tendência literária que prevalecia no mundo de então. E as contribuições individuais de alguns de seus integrantes tiveram um peso enorme para o desenvolvimento de uma literatura russa cada vez mais nacional, característica, e, ao mesmo tempo, rica e variada.
Cabe lembrar também que a polêmica colocou a literatura na ordem do dia da sociedade instruída russa. Isso sem dúvida influenciou a multiplicação e o consequente aperfeiçoamento dessa literatura. É por isso que ela e a reforma linguística que a provocou jazem na nascente da Era de Ouro da literatura russa.
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