BLOG PARA DIVULGAÇÃO DA LITERATURA RUSSA AOS FALANTES DE LÍNGUA PORTUGUESA.

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 A carta a seguir foi escrita por Bulgákov em 1930, após a rejeição de mais uma de suas peças. Sua resposta veio na forma de um telefonema do próprio Stalin, que perguntou ao escritor se ele queria mesmo partir para o estrangeiro, se tinha "enjoado" deles (dos soviéticos). Segundo as informações que chegaram até nós, o escritor — possivelmente assustado com as implicações de responder "sim" à segunda pergunta — teria respondido que um escritor russo não consegue viver sem sua pátria, e, assim, perdido a chance de sair do país. Ele conseguiu, porém, um bom emprego no teatro e, em 1931, quando voltou a trabalhar em O mestre e Margarida (o "romance sobre o diabo" mencionado na carta), acresceu uma linha autobiográfica anteriormente inexistente: a de um escritor resgatado pelo diabo, que obtém seu romance de volta por meio de um pacto com ele. Por causa disso, muitos estudiosos de Bulgákov identificam a figura de Woland com Stalin. Texto traduzido por Érika Batista a partir do original em russo.


Carta ao Governo da URSS

de Mikhail Afanássievitch Bulgákov (Moscou, Rua Pirogóvskaia, 35, apto. 6)





Dirijo-me ao Governo da URSS com a seguinte carta:


1


Depois que todas as minhas obras foram proibidas, entre muitos cidadãos que me conheciam como escritor começaram a soar vozes que me davam o mesmo conselho.

Escrever uma “peça comunista” (coloco as citações entre aspas) e, além disso, dirigir-me ao Governo da URSS com uma carta arrependida, contendo a renúncia às minhas opiniões anteriores, expressadas por mim nas obras literárias, e juras de que de agora em diante vou trabalhar como um escritor popúttchik[1] dedicado à ideia do comunismo.

Finalidade: livrar-me das perseguições, da pobreza e da ruína inevitável no final.

Não escutei esse conselho. Eu dificilmente conseguiria me apresentar ao Governo da URSS em uma luz favorável escrevendo uma carta mentirosa, consistente em uma manobra política desmazelada e, além do mais, ingênua. Tentativas de escrever uma peça comunista, por sua vez, eu nem realizei, sabendo de antemão que não consigo produzir uma peça assim.

O desejo de cessar meus tormentos de escritor, que amadureceu em mim, obriga-me a me dirigir ao Governo da URSS com uma carta veraz.

2


Realizando uma análise dos meus álbuns de recortes, descobri 301 pareceres sobre mim que saíram na imprensa da URSS nos dez anos do meu trabalho como escritor. Entre eles, os laudatórios eram três, e os hostis e afrontosos, 298.

Os últimos 298 são um reflexo perfeito da minha vida literária.

Em versos publicados na imprensa, chamaram o herói da minha peça Os dias dos Turbin, Aleksei Turbin, de “filho da puta”, e apresentaram o autor da peça como “acometido da síndrome de envelhecimento precoce”. Escreveram sobre mim como sobre um “faxineiro literário” que cata restos de comida nos quais já “vomitou uma dúzia de convidados”.

Escreveram isto:

“...meu compadre Míchka Bulgákov, também — com o perdão da expressão — escritor, anda revirando em lixo estragado... Que carantonha é essa que você tem, irmãozinho — eu pergunto... Sou um homem delicado, era caso de pegar e dar com uma bacia na nuca dele... Para o pequeno-burguês, sem os Turbin nós somos algo como um sutiã para cachorro: algo desnecessário... Não vou com a cara desse filho da puta. Não vou com a cara de Turbin, que não receba nem receita, nem sucesso...” (Jízn iskusstva, N. 44 – 1927).

Escreveram: “sobre Bulgákov, continua sendo o que sempre foi: um rebento da nova burguesia, salpicando a classe trabalhadora e seus ideais comunistas com uma baba venenosa, mas impotente” (Komsomôlskaia pravda, 14/X – 1926).

Informaram que gosto da “atmosfera de promiscuidade às voltas de alguma esposa de amigo ruiva” (A. Lunatchárski, Izvéstiia, 8/X - 1926) e que minha peça Os dias dos Turbin exala “fedor” (estenograma de uma reunião do Agitprop[2] em maio de 1927), e etc., etc...

Apresso-me a informar que faço essas citações não para queixar-me da crítica ou ingressar em qualquer tipo de polêmica. Minha finalidade é muito mais séria.

Estou demonstrando, com documentos nas mãos, que toda a imprensa soviética, e, junto com ela, todas as repartições a quem foi confiado o controle do repertório, passaram os dez anos do meu trabalho literário demonstrando de forma unânime e com ira extraordinária que as obras de Mikhail Bulgákov não podem existir na URSS.

E eu declaro que a imprensa da URSS está totalmente certa.


3


Meu libelo Ilha Carmesim me servirá de ponto de partida para esta carta.

Toda a crítica da URSS, sem exceções, recebeu esta peça com a declaração de que ela é “ruim, sem talento e inofensiva”, e que consiste em um “pasquim contra a revolução”.

A unanimidade era completa, mas foi rompida subitamente e de uma forma de todo surpreendente.

No N. 22 do Repertuárnyi Biulleten (1928) apareceu uma crítica de P. Novítski, na qual se informa que Ilha Carmesim é “uma paródia interessante e espirituosa” na qual “desponta a sombra maligna de um Grande Inquisidor que esmaga a criação literária, cultiva chavões dramáticos absurdos, bajuladores, dignos de escravos, os quais apagam a personalidade do ator e do escritor”, que em Ilha Carmesim fala-se sobre “uma força das trevas que cria idiotas, bajuladores e panegiristas”. Foi dito que, “se uma força das trevas assim existe, a indignação e a espirituosidade raivosa do renomado dramaturgo são justificadas”.

Pode-se perguntar: onde está a verdade?

O que é, afinal, a Ilha Carmesim, uma “peça ruim, sem talento” ou esse “libelo espirituoso”?

A verdade está na crítica de Novítski. Não me encarregarei de julgar quão espirituosa é minha peça, mas reconheço que, nela, realmente desponta uma sombra maligna, e é a sombra do Glavrepertkom, o Comitê Principal de Repertórios. É ele que educa idiotas, panegiristas e “serviçais” assustados. É ele que mata o pensamento criativo. Ele está arruinando a dramaturgia soviética e a arruinará por completo.

Não expressei esses pensamentos aos sussurros em um canto. Eu os encerrei em um libelo dramático e encenei esse libelo no palco. A imprensa soviética, defendendo o Glavrepertkom, escreveu que Ilha Carmesim é um pasquim contra a revolução. Isso é um balbucio leviano. Não há pasquim contra a revolução na peça por muitas razões, das quais apontarei só uma, por falta de espaço: é impossível escrever um pasquim contra a revolução, devido à extraordinária grandiosidade dela. Um libelo não é um pasquim, e o Glavrepertkom não é a revolução.

Mas quando a imprensa alemã escreve que Ilha Carmesim é “o primeiro apelo à liberdade de imprensa na URSS” (Molodáia gvárdia, N. 1 – 1929), está escrevendo uma verdade. Reconheço isso. A luta com a censura — qualquer que seja ela e quaisquer que sejam as autoridades em cujo governo ela exista — é meu dever enquanto escritor, assim como os apelos à liberdade de imprensa. Sou um apaixonado ardoroso dessa liberdade e suponho que, se algum escritor inventasse de provar que não precisa dela, ele se assemelharia a um peixe asseverando publicamente que não precisa de água.


4


Eis um dos traços da minha obra criativa e só ele já basta totalmente para que minhas obras não existam na URSS. Mas ao primeiro traço estão relacionados todos os demais, que aparecem nas minhas novelas satíricas: as tintas negras e místicas (sou um escritor místico) com as quais são retratadas as inúmeras fealdades do nosso modo de vida, o veneno do qual está cheia minha língua, o profundo ceticismo em relação ao processo revolucionário ocorrido em meu país atrasado, a comparação desse processo à Grande Evolução, a qual prefiro, e o principal — a retratação dos traços terríveis do meu povo, traços que, muito tempo antes da revolução, causavam sofrimentos profundíssimos a meu mestre M. E. Saltykov-Schedrin.

Não precisa nem dizer que a imprensa da URSS nem pensou seriamente em assinalar tudo isso, ocupada com avisos pouco convincentes de que a sátira de M. Bulgákov contém “calúnias”.

Só uma vez, no começo da minha fama, observou-se em uma espécie de tom de surpresa altiva:

“M. Bulgákov quer se tornar um satirista da nossa época” (Knigocha, N. 6 — 1925).

Ah! O verbo “querer” foi empregado no presente por equívoco. Deve-se passá-lo para o pretérito perfeito: M. Bulgákov tornou-se um satirista bem em uma época na qual toda sátira verdadeira (que penetre em zonas proibidas) é absolutamente inadmissível na URSS.

Não foi a mim que tocou a honra de expressar esse pensamento criminoso na imprensa. Ele foi expresso com total clareza no artigo de V. Blium (N. 6, Literatúrnaia gazeta), e o sentido deste artigo resume-se de forma brilhantemente precisa em uma única fórmula:

qualquer satirista na URSS atenta contra a estrutura soviética.

Acaso eu sou admissível na URSS?

5


E, por fim, meus últimos traços nas peças destroçadas, Os dias dos Turbin e Fuga, e no romance A guarda branca: a retratação teimosa da intelligentsia russa como a melhor classe social do nosso país. Em particular, a retratação da família nobre da intelligentsia, lançada no acampamento da Guarda Branca durante a guerra civil por vontade do destino inexorável, na tradição de Guerra e paz. Essa retratação é completamente natural para um escritor ligado à intelligentsia por laços de sangue.

Mas, na URSS, retratações desse tipo fazem com que seu autor receba junto com os heróis o atestado de soldado branco inimigo, a despeito de seus grandes esforços de se colocar acima dos vermelhos e dos brancos com imparcialidade. E, tendo recebido esse atestado, como qualquer um entende, pode se considerar uma pessoa arruinada na URSS.


6


Meu retrato literário está concluído, e é ele também meu retrato político. Não tenho como dizer quão profundo é o crime que se pode encontrar nele, mas peço uma coisa: que não busquem nada fora dele. Ele foi feito de maneira plenamente conscienciosa.


7


Agora, estou aniquilado.

Essa aniquilação foi recebida pela opinião pública soviética com plena alegria e chamada de “conquista”.

R. Píkel, ao assinalar minha aniquilação, (Izvéstiia, 15/IX - 1929), expressou um pensamento liberal:

“Não queremos dizer com isso que o nome de Bulgákov tenha sido riscado da lista dos dramaturgos soviéticos”.

E deu esperanças a um escritor abatido com as palavras: “está-se falando apenas das obras dramáticas passadas”.

No entanto, a vida, na pessoa do Glavrepertkom, provou que o liberalismo de R. Píkel não tem base alguma.

Em 18 de março de 1930, recebi do Glavrepertkom um papel que comunicava laconicamente que minha peça — não das passadas, uma nova — O jugo dos santarrões (Molière) NÃO FOI LIBERADA PARA APRESENTAÇÃO.

Direi brevemente: sob duas linhas de um papel timbrado foram enterrados o trabalho em bibliotecas e hemerotecas, minha imaginação, uma peça que recebeu pareceres incontáveis de especialistas teatrais qualificados como sendo uma peça brilhante.

R. Píkel está enganado. Não foram só minhas peças passadas que pereceram, mas também as presentes e todas as futuras. E eu joguei no forno pessoalmente, com minhas próprias mãos, o rascunho de um romance sobre o diabo, o rascunho de uma comédia e o começo de um segundo romance, Teatro.

Todas as minhas coisas são irremediáveis.


8


Peço ao Governo Soviético que atente para o fato de que não sou um ativista político, e sim um literato, e que entreguei toda a minha produção ao palco soviético.

Peço que prestem atenção nos dois pareceres a seguir, que saíram sobre mim na imprensa soviética.

Ambos provêm de inimigos inconciliáveis das minhas obras e, portanto, são muito valiosos.

Em 1925, escreveu-se:

“Está surgindo um escritor que não se fantasia sequer de popúttchik” (L. Averbakh, Izvéstiia, 20/IX - 1925).

E em 1929:

“O talento dele é tão evidente quanto o reacionarismo social da sua criação” (R. Píkel, Izvéstiia, 15/IX - 1929).

Peço que atentem para o fato de que a impossibilidade de escrever, para mim, é o equivalente a ser enterrado vivo.


9


PEÇO AO GOVERNO DA URSS QUE ORDENE QUE EU ABANDONE AS FRONTEIRAS DA URSS COM URGÊNCIA, ACOMPANHADO DE MINHA ESPOSA LIUBOV EVGUÊNIEVNA BULGÁKOVA.


10


Apelo à humanidade das autoridades soviéticas e peço que me libertem magnanimamente, a mim, um escritor que não pode ser útil em casa, na pátria.


11


Se nem isso que escrevi for convincente, e me condenarem a um silêncio vitalício na URSS, peço ao Governo Soviético que me dê um trabalho segundo minha especialidade e me comissione a trabalhar no teatro como diretor efetivo.

Peço em tom enfático exata e precisamente uma ordem categórica de comissionamento, porque todas as minhas tentativas de encontrar um trabalho nessa única área em que posso ser útil à URSS como um especialista excepcionalmente qualificado acabaram em completo fiasco. Meu nome foi feito tão odioso que as ofertas de trabalho da minha parte foram recebidas com pavor, apesar de que, em Moscou, uma quantidade enorme de atores e diretores, bem como os dirigentes dos teatros, sabem muito bem da minha perícia extraordinária em matéria de teatro.

Ofereço à URSS um diretor e ator especialista totalmente honesto, sem qualquer sombra de sabotagem, que se encarregará de montar conscienciosamente qualquer peça, das peças shakespearianas e até as de hoje.

Peço que me nomeiem diretor auxiliar no Primeiro Teatro Artístico — na melhor escola, capitaneada pelos mestre K. S. Stanislávski e V. I. Nemiróvitch-Dântchenko.

Se não me nomearem diretor, solicito um cargo efetivo de figurante. Se não der nem para figurante, solicito o cargo de assistente de palco.

Se até mesmo isso for impossível, peço ao Governo Soviético que proceda comigo como considerar devido, mas tome alguma providência, porque, no presente momento, eu, um dramaturgo que escreveu cinco peças e é famoso na URSS e no estrangeiro, só tenho à minha disposição a pobreza, o olho da rua e a ruína.

***


[1] Essa palavra, que significa “companheiro de viagem”, designa também uma pessoa que adere de maneira temporária e apenas exteriormente a algum movimento sócio-político. No contexto literário, indicava o grupo dos escritores provenientes de ambientes não-proletários que, sem serem revolucionários propriamente ditos, apoiavam a política soviética nos anos 1920-1930. (N. T.)

[2] Sigla do Departamento de Agitação e Propaganda, um órgão do Comitê Central do Partido Comunista da URSS que cuidava da propaganda socialista no país. (N. T.)

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