Se me perguntassem qual o clássico russo mais lido e discutido pelos próprios russos, eu apostaria sem hesitar em O mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov. Basta entrar nos recantos literários da runet — o segmento da internet em língua russa — para se deparar com centenas de vídeos, artigos, ilustrações, ensaios fotográficos e fóruns onde as pessoas expõem e discutem suas interpretações de cada detalhe do complexo romance. Muitos o consideram o livro mais aguardado do programa obrigatório de literatura das escolas russas, e com frequência ele é lido pelas crianças e adolescentes mesmo antes de chegar sua vez no programa, por recomendações de pais, avós ou outros parentes. Além disso, os lugares de Moscou citados no livro viraram pontos de peregrinação de fãs entusiasmados que volta e meia frequentam excursões temáticas pela “Moscou de Bulgákov”.
Por que o livro goza de tanta popularidade na sua terra natal? Uma das respostas para essa pergunta reside na faceta local do livro: muitos o consideram um maravilhoso retrato satírico da sociedade soviética de sua época. Mas isso não explica por que ele faz sucesso mesmo entre jovens nascidos após o período socialista e em outros lugares do mundo.
O mestre e Margarida costuma ser definido como um romance em camadas. E, de fato: qualquer recorte que se faça dele revelará níveis e mais níveis de significado que o tornam uma obra-prima tanto do autor, quanto da literatura nacional em que está inserido e, quiçá, da literatura mundial.
Esse breve prefácio serve para afastar qualquer ilusão de que a presente resenha esgotará a obra, por mais que se tente pincelar todos os seus aspectos, incluindo a história por trás do livro que se entrecruza com a história dentro dele. Sempre haverá mais para se extrair de O mestre e Margarida a cada estudo ou releitura
A(S) TRAMA(S)
O livro começa com dois literatos conversando em um crepúsculo primaveril, no Parque do Patriarca, em Moscou. Sua conversa é sobre o poema antirreligioso do mais novo, Ivan Sem-Teto, escrito sob encomenda para a revista editada pelo segundo, Berlioz, por ocasião da Páscoa que se aproximava. Berlioz, presidente da associação moscovita de literatos MASSOLIT, reclama da abordagem do jovem no poema: ele acha que, em vez de ter pintado Jesus como uma figura desagradável, como fizera, Ivan devia ter enfatizado a não-existência de um Jesus como figura histórica.
|
"Salvadores do mundo". Emelian Iaroslávski, F. M. Putintsev, 1923.Suplemento antirreligioso com a história de vários deuses pagãos cujas mitologias contêm elementos da história de Cristo. As mesmas coisas que Berlioz diz para Ivan Sem-Teto no livro. |
Enquanto Berlioz tenta provar seu ponto e fornecer argumentos para o outro explorar no poema, um estranho se aproxima da dupla e começa a escutar a conversa. Logo mais, ele se intromete, dizendo-se interessado no assunto. Alegra-se muito ao ouvir o que eles defendem e, ao saber que são ateus, senta junto e começa a debater a existência de Deus e a medida de controle que o homem tem sobre os eventos, conta uma história sobre o julgamento de Cristo por Pilatos, que diz ter presenciado e, durante a conversa, faz declarações de cunho profético sobre a morte de Berlioz, entre outras coisas. Incomodados, os literatos — ou cidadãos, como o autor os apresenta — desconfiam que o estranho autodenominado Professor Woland, estudioso estrangeiro de magia negra convocado ao país na qualidade de consultor, era, na verdade, um espião.
Quando decidem tomar uma providência para denunciar o espião às autoridades, as profecias de Woland começam a se cumprir: Berlioz sofre uma morte trágica.
Abalado pela morte de Berlioz, e mais ainda pela coincidência dos detalhes dessa morte com a profecia de Woland, Ivan entende que o suposto estrangeiro — com quem já antipatizara — fora responsável pela tragédia e sai atrás dele. No percurso, depara-se com dois integrantes do séquito de Woland: um homem magérrimo e altíssimo de xadrez e pincenê rachado e um gato descomunal que andava sobre duas patas e pegava o bonde como um humano.
A perseguição logo fica alucinada, não pela velocidade, mas pela forma instintiva como Ivan a conduz após perder a pista dos seus alvos. No meio do caminho, intuindo que estava lidando com uma força sobrenatural, ele apanha um santinho e uma vela, toma um banho no rio Moscou sabe-se lá por quê, perde as roupas e precisa vestir farrapos largados por um mendigo e, assim trajado, chega ao restaurante da Casa Griboiêdov, na qual fica a sede da MASSOLIT. Sua busca termina ali porque, causando um escândalo no restaurante, Ivan é apanhado pelos escritores reunidos ali e levado para o hospício nos arredores da cidade, e assim se cumpre mais um ponto da profecia de Woland.
O próprio Woland reaparece na manhã seguinte no apartamento do finado Berlioz, que ficava no n. 50 do prédio 302-b da Rua Sadováia e tinha fama de amaldiçoado porque as pessoas costumavam desaparecer dali. Após se livrar do último morador do apartamento, o leviano diretor do teatro de variedades Variété — que vai parar em Ialta, na Crimeia, a muitíssimos quilômetros de Moscou — , Woland se instala no local com seu séquito, acrescido do bruto Azazello, um homúnculo ruivo atarracado com leucoma no olho e um canino proeminente.
Como a parte do apartamento pertencente a Berlioz estava oficialmente desocupada, as autoridades determinam ao presidente do comitê predial Nikolai Ivânovitch Bossoi que organize a distribuição dos cômodos do falecido. Quando este vai vistoriar o apartamento, depois de se desvencilhar de muitos moradores que solicitam o espaço, encontra-o ocupado. Um homem de xadrez, sentado nos cômodos outrora lacrados, se apresenta como Korôviev e diz ser o tradutor de um artista alemão em turnê que devia se apresentar no teatro Variété com uma sessão de magia negra e fora convidado pelo diretor do teatro, Likhodêiev, a se hospedar no apartamento deste. Ele tenta subornar o administrador para deixá-lo ficar com o apartamento todo enquanto estiver na cidade.
O suborno, que Nikanor Ivânovitch aceita, transforma-se em dólares, levando-o para a polícia e depois para o hospício, onde ele terá pesadelos com artistas populares declamando Púchkin para convencer uma multidão estranha de homens barbados a “entregar o dinheiro estrangeiro”.
A posterior tentativa do tio ucraniano de Berlioz de herdar o apartamento também malogra e Woland fica instalado lá.
Enquanto isso, Likhodêiev tenta entrar em contato com seus colegas da direção do Variété, irados com seu desaparecimento. Entrando em conflito com o séquito de Woland, um deles — o administrador Varenúkha — acaba transformado em vampiro pela última membra do séquito, a ruiva bruxa-vampira Hella, que tem uma cicatriz feia no pescoço e quase sempre anda nua. Mais tarde, Hella e Varenúkha atacam o terceiro membro da administração do Variété, o diretor financeiro Rímski, que foge de Moscou à toda pressa.
Esse ataque acontece após um dos mais interessantes capítulos do livro: a apresentação de Woland no Variété. Melhor dizendo, a apresentação de Korôviev e do gato falante, Beemote, pois Woland apenas fica sentado em uma cadeira no palco, contemplando o público e suas reações ao espetáculo. O próprio espetáculo fora uma invenção do seu séquito para que o amo deles tivesse a oportunidade de “dar uma olhadinha nos moscovitas em massa”, conforme Woland confessa mais tarde a um personagem que vai visitá-lo.
A apresentação, que começa com truques de baralho, escala rapidamente com uma chuva de dinheiro, a decapitação do apresentador — que tem a cabeça colada após a plateia pedir misericórdia — e culmina com a revelação de uma infidelidade conjugal, após todas as mulheres da plateia ganharem roupas, sapatos, batons e perfumes estrangeiros, em troca de suas roupas comuns. Tanto as roupas, quanto o dinheiro, que desaparecem nos momentos mais inconvenientes, causam grande confusão em Moscou.
Como se não bastasse, Korôviev e o gato Beemote ainda saem pela cidade no dia seguinte, comparecendo a algumas repartições públicas e fazendo mais alguns truques sobrenaturais que mandam muita gente para a prisão e para o hospício.
No hospício, Ivan, já resignado com sua permanência lá, recebe a visita de um vizinho de corredor que invade seu quarto pela sacada bem na noite do espetáculo no Variété — que, vale dizer, se passa em uma quinta-feira da Paixão. Esse vizinho, o “mestre” do título, trava uma conversa com o novo interno e ambos se surpreendem por estarem lá “por causa de Pôncio Pilatos”. Isto é, Ivan porque contava a todo mundo que o homem que estava perseguindo conhecera Pilatos pessoalmente, e o mestre, porque escrevera um romance sobre Pilatos que acabara por privá-lo de um lar, deixá-lo em depressão e fazê-lo a se internar voluntariamente.
Esse romance constitui a segunda trama do livro, entremeada nas outras aos pedaços, ora na história que Woland conta no Parque do Patriarca, ora no sonho de alguém, ora nos trechos do manuscrito lidos pela protagonista da terceira trama, Margarida.
A história sobre Pilatos narra como o procurador da Judeia recebeu o caso de um Yeshua Ha-Notzri condenado pelo Sinédrio judaico para confirmar a condenação, foi curado por ele e até simpatizou com o rapaz, mas não quis se arriscar para tentar salvá-lo da punição injusta — e depois passou o resto da vida e boa parte da eternidade tentando consertar seu erro. Procurou minorar as dores da execução de Yeshua, na medida do possível, dar-lhe um enterro digno, matar seu traidor e proteger seu único seguidor na história, o ex-publicano Levi Mateus. Mas esses atos são diminutos e incapazes de redimi-lo.
Margarida, por sua vez, só aparece na segunda parte do livro, onde seu terceiro eixo se desenrola e puxa os outros dois, unificando a história.
Ela é a amante e única fã do mestre, quem lhe deu esse título que ele adotou como única identificação. Foi ela que o estimulou a concluir e publicar seu romance. Por isso, culpa-se pela perseguição sofrida por ele, que o fez sumir bem na noite em que ela pretendia deixar o marido para ir viver com o mestre.
Após meses desconsolada, sem saber do mestre nem conseguir esquecê-lo, Margarida sai para um passeio, aproveitando a ausência do marido. Senta-se em um banco junto ao muro do Kremlin que lhe traz memórias do mestre e, enquanto contempla a procissão fúnebre de Berlioz, medita em sua triste situação e chega a pensar que venderia a alma ao diabo para saber onde o amado estava. Então aparece-lhe Azazello com um convite para visitar “um estrangeiro ilustre”, o que ela aceita, esperando conseguir notícias do mestre.
Passando um creme dado por Azazello, Margarida transfigura-se, ficando mais jovem e bonita, liberta-se da culpa de deixar o marido para trás e fica literalmente mais leve, capaz de voar. Agora bruxa, ela voa de vassoura por Moscou, invisível, consuma algumas vinganças pessoais, segue para o campo, encontra sua empregada, Natacha, também transformada em bruxa pelo creme e montada no vizinho que virou porco, banha-se em um rio, participa de uma festinha com sereias e sátiros e volta para Moscou em um carro voador pilotado por uma gralha.
Levada por Azazello ao apartamento de Woland, ela é recebida por Korôviev, que antecipa o que querem dela e a leva ao encontro do amo. Woland a convida para ser sua anfitriã naquele ano em um baile que dá anualmente para os mortos condenados ao inferno. A tradição é que a anfitriã seja sempre uma habitante da cidade onde o baile ocorre, e sempre chamada Margarida. Ela topa e Natacha, Hella, Korôviev e o gato preparam-na para a tarefa.
Ao baile de Satanás comparecem muitas figuras reais e lendárias da história da humanidade, suspeitas ou condenadas por crimes e atrocidades, e também personagens ficcionais. O próprio Woland só aparece no final, para beber o sangue do único convidado vivo, um informante enviado para espioná-lo.
Exausta e dolorida por causa dos beijos dos cadáveres, Margarida recebe, no entanto, sua recompensa, durante um jantarzinho íntimo com Woland e seu séquito. O mestre é magicamente abduzido do hospício, o romance, que ele queimara em um ato de desespero, magicamente restaurado, os quartinhos no porão onde ele vivia lhes são devolvidos, com a expulsão do denunciante que os ocupara. Além disso, Natacha recebe permissão de continuar bruxa, o porco volta a ser gente e até Varenúkha é graciosamente liberado para abandonar a forma vampírica e voltar para casa.
Tudo isso se passa na Sexta-feira Santa. No sábado, a polícia, que já vinha investigando as esquisitices acontecidas em Moscou e traçara suas origens ao apartamento 50 do n. 302-b da Sadováia, finalmente consegue entrar no apartamento. Armados até os dentes, os policiais não conseguem apanhar nem o gato, o único integrante da “corja” de Woland que veem. O mesmo gato encena a própria morte e ressurreição e entra em um tiroteio com a polícia que termina com ambos os lados incólumes. Apenas o apartamento vai sendo danificado e o gato finaliza sua destruição incendiando-o com a gasolina de um fogareiro. Depois sai tranquilamente pela janela e desaparece no telhado, continuando a desviar das balas.
Mais tarde, ele e Korôviev destroem outros cenários do livro e símbolos da vida soviética de então, como a sede da MASSOLIT e a Torgsin, uma loja que só aceitava pagamentos em dinheiro estrangeiro e comercializava itens de melhor qualidade a preços altos.
Woland, nesse meio tempo, recebe a visita de Levi Mateus, que vem entregar uma mensagem de Yeshua: ao partir da cidade, Woland deve levar o mestre consigo e dar-lhe descanso. À pergunta de por que o próprio Yeshua não o levava para os seus, Levi responde que “o mestre não mereceu a luz, mereceu paz”, e acrescenta um pedido para que Woland levasse também Margarida e a deixasse junto daquele a quem ela amava.
Azazello é enviado para cumprir esse encargo, e o faz envenenando o casal. Eles visitam Ivan em despedida. Ficamos sabendo que, na verdade, ambos morreram: Margarida na sua casa, o mestre no hospital. Seus espíritos partem com Woland e o séquito dele e, na viagem, a verdadeira aparência e natureza dos integrantes desse séquito são revelados. Antes de chegarem a seu destino final — uma casinha solitária em um lugar meio soturno já visto em sonhos por Margarida — , eles fazem uma parada no purgatório de Pilatos, para libertá-lo, por intercessão de Yeshua.
Pilatos e seu cachorro partem em um raio de luar, ao encontro de Yeshua, com quem Pilatos tanto ansiava conversar.
O epílogo do livro nos conta a investigação sobre as peripécias de Woland e seu séquito em Moscou e o destino posterior de diversos personagens, entre eles Ivan Sem-Teto. Totalmente mudado, na presença da lua cheia primaveril, ele ainda sente as consequências dos eventos que abalaram Moscou e seu próprio universo pessoal.
MANUSCRITOS NÃO ARDEM
Uma das cenas mais icônicas de O mestre e Margarida é um diálogo do diabo com os personagens que dão nome ao livro, em que, ao ouvir falar que o mestre escreveu um romance sobre Pôncio Pilatos, o diabo pede para dar uma olhada no romance. O mestre responde que não pode, pois o queimou, e Satanás responde que isso era impossível, porque “manuscritos não ardem”. Um instante depois, ele tem nas mãos o referido manuscrito, intacto.
A frase “manuscritos não ardem” (não queimam, não se consomem pelo fogo, dependendo da tradução) ficou tão famosa que virou até tatuagem e nome de álbum musical. Sua fama se deve, em grande parte, a ecoar a realidade: assim como o mestre, Bulgákov também lançou no forno a primeira redação do seu romance — deste romance. Mas ele renasceu das cinzas e se tornou a obra máxima de seu autor.
Como costuma acontecer com esse tipo de obra, ela ficou muito tempo no forno: Bulgákov teve a ideia inicial para O mestre e Margarida em 1928, começou a trabalhar nele no mesmo ano ou no ano seguinte, e mexeu no texto até as vésperas de sua morte.
Primeira versão
O pretexto original do livro era bem simples: Bulgákov queria escrever um romance sobre o diabo. Seguindo a linha de suas obras fantásticas, de viés grotesco e tragicômico (
Os ovos fatais, Diabolíada e Coração de cachorro ), o romance exploraria o tema do diabo visitando uma cidade.
Essa primeira versão do romance foi escrita entre 1928 e 1930, chegou a quinze capítulos e teve vários nomes provisórios: O mago negro, O casco do engenheiro, O malabarista com casco, Filho V, Turnê.
A filóloga Marietta Tchudákova, uma das principais estudiosas de Bulgákov, obteve os restos da primeira redação com a viúva do escritor, algumas décadas após a morte dele e, ao registrar os manuscritos para armazenamento na Biblioteca Lenin (atualmente, Biblioteca Nacional Russa), conseguiu reconstituí-los parcialmente.
O escopo dele, então, ainda era bem estreito. O núcleo do mestre e de Margarida ainda não existia, Satanás ainda não era o professor Woland, e sim um engenheiro, e toda a história de Jesus e Pilatos estava concentrada em seu relato no capítulo 2. Na cena com os dois literatos — que também tinham outros nomes — , ele desenha o rosto de Jesus no chão e desafia os interlocutores, que se dizem ateus, a pisar nele. Eles hesitam, e o estranho os ridiculariza, dizendo que eles não passam de uns intelligenty, i. e., membros da classe de intelectuais russos desprezada na URSS por suas tendências pequeno-burguesas. Irritado pela “ofensa”, Ivan pisa no retrato e desencadeia o episódio da morte de Berlioz, cujo caixão ele derruba no rio Moscou após fugir do hospício na forma de um poodle negro (ou ajudado por um). Assim, cumpre-se a predição de Satanás, um pouco diferente naquela versão: quando Berlioz dissera que, após morrer, seria cremado, o diabo respondera “pelo contrário”, negando, porém, quando o outro indagou se ia se afogar.
Nessa primeira versão, Bulgákov ainda se atinha bastante à narrativa dos evangelhos e aos textos apócrifos, inclusive a lenda do
Véu de Verônica. Também contava com personagens que depois sumiram, como a poetisa Stepanida, fofoqueira responsável por espalhar a notícia da morte de Berlioz por Moscou, e o doutor em teologia Féssia, que deveria encontrar o diabo depois de Berlioz e, diferente deste, compreender com quem estava lidando, devido à sua especialidade acadêmica. Continuando a linha dos heróis intelligenty de Bulgákov (o Prof. Pêrsikov de
Os ovos fatais e o Prof. Preobrajênski de
Coração de cachorro), Féssia era um intelectual típico, que passava mais tempo na Itália, em férias com sua mãe, do que na Rússia, a ponto de falar russo mal e “nunca ter vido um mujique”.
Esse Féssia — que aparecia em um capítulo chamado “O que é erudição?” — parece ter sido substituído pelo mestre nas redações subsequentes, quando a linha autobiográfica da obra de Bulgákov (representada pelos contos e folhetins de
Anotações de um jovem médico,
Anotações de um falecido e
Anotações nos punhos) se uniu à linha grotesca, unificando a obra do escritor em
O mestre e Margarida.
Em março de 1930, porém, após sucessivas recusas da censura em admitir a montagem de suas peças, o escritor se revoltou, resolveu largar a escrita e, em um ato de desespero, lançou a maior parte do romance no fogo. Sobraram dois ou três cadernos com a maioria das páginas arrancadas, cujos restolhos ele conservou para que — segundo explicou à sua amante e futura esposa Elena Serguêievna — as pessoas acreditassem que o romance existira.
Ele escreveu sobre isso na sua famosa
Carta ao governo soviético, enviada a sete endereços de governantes da época, em que implora que o mandem sair do país, já que a imprensa soviética o considerava um reacionário incorrigível com obras que não deviam ser disponibilizadas ao público. Mesmo afirmando que, para ele, viver sem escrever seria uma tortura, pede um emprego no teatro caso o governo não deseje expulsá-lo, pois precisa desesperadamente de um ganha-pão. À esposa, disse que se suicidaria se ninguém respondesse.
Segunda versão
A resposta esperada veio do modo mais inesperado: em 18 de maio do mesmo ano, ele recebeu uma ligação do próprio Stálin. Chegou a pensar que era trote, mas quando a ligação foi repetida e mandaram-no aguardar na linha, pois o líder da nação queria falar com ele, o escritor, naturalmente, paralisou. Segundo consta das memórias de Elena Serguêievna Bulgákova, do outro lado da linha veio uma voz com forte sotaque caucasiano, que, após saudar o “camarada Bulgákov”, disse-lhe algo nesta linha:
— Recebemos sua carta. Eu e os camaradas lemos. O senhor receberá uma resposta favorável a ela… Mas, talvez… É verdade? O senhor está pedindo para ir ao estrangeiro? O que foi, enjoou de nós?
Pego de surpresa pelas perguntas e pela própria ligação, Bulgákov se perdeu e demorou um pouco para responder.
— Pensei muito ultimamente se o escritor russo pode viver longe da pátria. E me parece que não pode — disse, enfim.
Stálin teria respondido que concordava com essa opinião e que Bulgákov devia pedir emprego de novo no teatro em que queria trabalhar, onde até então o tinham rejeitado. A conversa teria terminado com uma observação do estadista sobre querer se encontrar pessoalmente com o escritor.
Esse encontro parece ter ficado só no “vamos marcar”, mas a promessa de emprego foi cumprida e, em 19 de abril de 1930, Bulgákov começou a trabalhar no Teatro de Arte de Moscou como diretor-assistente. Foi assim que perdeu uma possível chance de emigrar, lamentada pelo resto da vida, que ele passou integralmente na URSS.
De início, Bulgákov teve a esperança de que a benção de Stálin destravaria sua carreira literária e dramatúrgica. Essas esperanças foram logo desapontadas, e ele escreveu pouco em 1931. Chegou a fazer alguns esboços com base no romance destruído, em cujo enredo apareceu uma nova linha, autobiográfica: a do escritor em desgraça, narrada em primeira pessoa pelo mestre, que ainda não se chamava mestre. Além disso, a sensação de ter feito um pacto com o diabo, segundo Marietta Tchudákova, o teria levado a ressignificar o personagem de Woland e talvez o de Pilatos, dois personagens volta e meia identificados com Stálin pelos críticos.
Só em 1932, a peça
Os dias dos Turbin voltou a ser encenada no Teatro de Arte de Moscou, depois que Stálin, que não gostara de uma peça que assistiu lá, perguntou pela de Bulgákov. Também nesse ano, Bulgákov se reencontrou com Elena Serguêievna, então Shilóvskaia, com quem tivera um caso entre 1929 e 1931 e de quem estava separado havia quase dois anos, pois ela cortara todas as ligações com ele a pedido do marido, o importante militar Evguêni Shilóvski. O reencontro se deu em setembro, ela pediu a separação, e Shilóvski aceitou. Deixando o filho mais velho com o marido, ela levou o mais novo e foi morar com Bulgákov, que se divorciou da segunda esposa, Liubóv, em 3 de outubro de 1932, e casou-se com Elena no dia seguinte.
Quando eles foram morar juntos, ele disse que ia reescrever o romance sobre o diabo. Estavam, então, provisoriamente instalados no hotel Astória, em Leningrado, enquanto seu apartamento por uma reforma. Elena perguntou como ele o faria, já que os últimos esboços e o que restara da primeira versão estavam em Moscou. Bulgákov teria dito que não precisava deles, que se lembrava de tudo — como o mestre diz a Margarida no final do romance, quando ambos partem para o descanso eterno.
E, de fato: muitos episódios que chegaram até nós na última versão do romance ainda se assemelham ao que havia nos cadernos queimados, ao menos em suas linhas gerais. Começando tudo de novo, Bulgákov redigiu a segunda versão do romance entre 1932 e 1936, parando diversas vezes para cumprir suas obrigações no teatro e escrever peças que lhe eram solicitadas, mas nunca foram encenadas. No fim de 1933 ele já tinha escrito 506 páginas, em três cadernos e meio. Uma anotação em um dos cadernos de 1934 diz: Terminar antes de morrer.
A história dos dois amantes foi incorporada no romance e Woland ganhou a nova função de articular seu reencontro. O
pacto fáustico cristalizou-se no enredo e a história de Pilatos e Yeshua se fragmentou ao longo do livro. Essa versão manteve o subtítulo fixo de
Romance fantástico, enquanto o título variava:
O grande chanceler, Satanás, Aqui estou, O mago negro, O casco do engenheiro…
Terceira versão
O título O mestre e Margarida só apareceu na terceira versão, que começou a ser redigida em 1937 sob o nome de O príncipe das trevas. Também do diário de Elena Serguêievna (que ela começou a manter em 1933 a pedido do marido ), extrai-se a notícia de uma visita de Anna Akhmátova em que esta teria falado do destino do poeta Óssip Mandelstam, apanhado pela onda de repressão do Grande Expurgo, e também sobre Boris Pasternak.
Nessa visita, teria chegado aos ouvidos de Bulgákov o relato de uma conversa de Stálin com Pasternak, em que o político buscara extrair a opinião de um evasivo Pasternak sobre as qualidades literárias de Mandelstam, e o teria feito com a seguinte pergunta: “Mas ele é um mestre, afinal? Um mestre?”. Não se tratava de uma indagação sobre o talento do poeta, em sentido abstrato: Stálin encarava a literatura como um ofício, uma profissão que podia ser aprendida objetivamente, e já tinha expressado a opinião de que os escritores revolucionários podiam adquirir a maestria nessa profissão aprendendo-a até com “os mestres” do antigo regime. Isso explica uma medida de tolerância que ele ocasionalmente demonstrava em relação a escritores não alinhados com os ideais soviéticos, como os próprios Bulgákov e Pasternak.
Foi depois disso que Bulgákov alterou o nome do seu herói autobiográfico de “poeta” — referência a como eram chamados os escritores na época de Púchkin — para “mestre” e anotou em seus rascunhos o título que permaneceu na obra até hoje.
O grosso da terceira versão foi terminado em 1938, mas Bulgákov continuou a corrigir o livro e trabalhar nele até um mês antes de sua morte. Àquela altura, já não tinha forças para escrever ou datilografar, estava quase cego e dependia da esposa para ler o manuscrito para ele e anotar as alterações que ditava.
|
Bulgákov e Elena Serguêievna no final da vida do escritor. |
Havia resquícios de oito redações do livro no arquivo do autor quando ele faleceu e, pela quantidade de alterações realizadas um pouco antes de seu passamento, é justo pensar que ele continuaria mexendo na obra se pudesse. A correção parou na cena do enterro de Berlioz, no primeiro capítulo da parte dois, “Margarida”. Não era feita de modo totalmente linear, porém, pois um dos últimos ajustes feitos pelo autor foi escrever o epílogo. Isso também explica porque existem pequenas discrepâncias na segunda parte entre edições diversas do livro, em especial nos últimos capítulos.
Uma das principais mudanças entre as redações, da qual há sinais inclusive nas últimas correções, foi a humanização progressiva de Yeshua na trama de Pilatos, seu distanciamento proposital das narrativas evangélicas. No polo oposto, ocorreu também uma amenização das figuras de Woland e seu séquito. No início, eles tinham arroubos de maldade gratuita, perdidos ao longo das reescritas enquanto se reforçava seu papel de administradores do justo castigo, responsáveis por limitar as sombras ao seu espaço sem que a luz tivesse que manchar as mãos — em suma, a força “que faz sempre o bem, embora querendo o mal” mencionada na epígrafe.
Publicação
Uma das últimas versões da obra foi lida para os amigos do escritor reunidos em seu apartamento em 1939. Reconhecendo as coisas, lugares e pessoas satirizadas, os espectadores opinaram que aquela obra não podia ser publicada de modo algum no contexto em que viviam.
E de fato. Após a morte do autor, sua viúva fez algumas tentativas de publicá-la, notadamente em 1940 e 1946. Foi somente depois que Stálin também morreu e seu legado foi parcialmente renegado no
Degelo de Khruschióv que o nome de Bulgákov pôde voltar à imprensa oficial soviética.
Em 1962, publicaram seu romance Jizn’ gospodina de Moliere (A vida do senhor de Molière), e O mestre e Margarida foi mencionado no texto que acompanhou o romance. O próximo livro a sair foi Anotações de um jovem médico, com algumas datas trocadas e um conto faltando. Em 1965 saiu o Romance teatral, romance inacabado batizado pelo autor originalmente de Zápiski pokôinika (Anotações de um falecido). O título foi alterado pela revista em que ele saiu. Segundo o editor disse à viúva, era melhor publicar o Romance teatral a não publicar as Anotações de um falecido. Essas pequenas mudanças mostram que a redescoberta obra de Bulgákov ainda não era considerada inofensiva e irrestritamente adequada para o leitor soviético, e que os ventos ainda não eram favoráveis à publicação do debochado ápice dessa obra.
O mestre e Margarida primeiro viu a luz em 1966, na revista literária Moskvá, n.º 11 de 1966 e nº 1 de 1967, como resultado dos esforços de Elena Serguêievna, do poeta soviético Konstantin Símonov e do filólogo Abram Zinóvievitch Vulis, que fizera seu mestrado sobre a sátira soviética dos anos 1920 e incluíra trechos deste livro inédito em sua dissertação. Primeiro tentaram publicá-lo no suplemento literário da revista Ogoniók (Lume), em que tinham saído as outras obras de Bulgákov, mas, diante do insucesso, apresentaram o manuscrito a Evguêni Efímovitch Popóvkin, redator-chefe da Moskvá que, por ser uma revista regional, não atraía tanto a atenção dos órgãos governamentais soviéticos quanto as revistas de circulação nacional.
O intervalo de um número (nº 12 de 1966) entre as publicações não foi à toa: a censura relutou em aceitar a publicação da primeira parte da história, e manifestou-se contra a publicação da segunda, sob o argumento de que o autor não terminara de refazê-la, pois morrera no processo. Mas o livro todo acabou saindo, embora não inteiro. Suprimiram-se todas as alusões à repressão e ao Terror, bem como à origem aristocrática de Margarida e algumas outras cenas e frases consideradas caóticas ou impróprias. Os cortes feitos para viabilizar ideologicamente a publicação, que somavam mais de 14.000 palavras, foram justificados pela redação como “cortes de edição”, necessários simplesmente para condensar a obra a fim de publicá-la em uma revista. Há quem considere isso uma manobra para minorar a importância dos trechos cortados aos olhos oficiais e poder publicar o texto integral do romance em formato de livro, mais tarde, o que fora prometido a Elena Serguêievna Bulgákova.
Esta teve a paciência de datilografar individualmente para os amigos dossiês com todas as partes cortadas e indicações precisas de onde cada uma se encaixava no texto, e presenteá-los junto com a revista. Esses combos de revista e dossiê passaram a circular no underground. Alguns foram vendidos para o estrangeiro, onde o texto integral saiu pela primeira vez pela editora YMCA-Press em Paris, em 1967, e em 1969 saiu pela Possev, editora da diáspora russa na Alemanha, com as partes censuradas destacadas em cursivo.
Em 1968, O mestre e Margarida saiu pela primeira vez como livro na URSS, em estoniano, pela editora Eesti raamat. Mas ainda era a versão abreviada publicada na revista Moskvá.
A musa que inspirou Margarida também morreu sem ver o romance sobre Pilatos publicado inteiro em sua pátria. Elena Serguêievna faleceu em 1970, e só em 1973 conseguiram cumprir sua promessa de publicá-lo, na esteira de uma resolução do Comitê Central do Partido Comunista da URSS que determinou a reedição dos livros de Bulgákov, Mandelstam e outros escritores da década de 1920, com artigos introdutórios avaliando-as de acordo com critérios marxistas-leninistas.
Essa edição de 1973, no entanto, contou com uma revisão feita por A. Saakiants que modificou muita coisa em relação ao texto que Elena Bulgákova trabalhara por mais de vinte anos (de 1940 a 1963), com base nas últimas anotações e no testamento do marido. Vale apontar que um dos dois cadernos contendo as últimas correções do autor, feitas ou ditadas, já não existia em 1973. As diferenças entre a versão revisada por A. Saakiants e a versão de Elena Bulgákova já foram contabilizadas por estudiosos em mais de três mil. Em 1989, surge outra edição com uma terceira versão do texto, que mescla a da edição de 1973 e a versão final de Elena Bulgákova.
Como resultado, o livro não tem um texto canônico: reeditadas várias vezes, as três versões ainda circulam por aí, tanto no original, quanto nas traduções, que podem partir de qualquer uma delas. Essas discrepâncias, porém, não impediram nem impedem o sucesso do livro, que permanece sólido há mais de meio século em sua pátria e no mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário